segunda-feira, 17 de maio de 2010

Palermo Shooting - Wim Wenders




Não é mistério para muita gente que a identidade autoral sempre foi para Wim Wenders uma espécie de catalizador traumático do seu universo artístico. Essa identidade é algo que, na sua óptica, tem de ser constantemente alimentada por mais do que obras, por acções visíveis que traduzam a cada momento o reafirmar de um estatuto. Já quase trinta anos se passaram desde Lightning Over Water, (1980). Aparte os discursos de homenagem conduzida por um fascínio ou, nos antípodas, de exploração eticamente duvidosa, o certo é que o documentário sobre os últimos momentos da vida de Nicholas Ray representa, na carreira de Wim Wenders, uma primeira eulogia: um primeiro passo de entrada, ou aproximação, mais ou menos forçada, ao panteão dos “grandes” (se é que tal espaço existe).

É pelo menos desde aí que o sucesso de Wenders se constitui, através da permeabilidade das suas personagens a essa insegurança identitária. Personagens em viagem e em vazio interior que percorrem o espaço exterior como se caminhassem “por dentro”, no cruzamento de uma espécie de naufrágio emocional e geográfico. Paris, Texas (1981), Lisbon Story (1994), Wings of Desire (1987) menos, expuseram Wenders dessa maneira, em plena travessia de fascínio pelo mundo e incerteza existencial.

Em Palermo Shooting, nomeado para a Palma de Ouro em Cannes mas também já apelidado como um dos piores filmes de 2008, o envelhecimento ganha expressão no território dramático do realizador alemão. Naquele, Finn, um conceituado fotógrafo germânico (interpretado por Campino, o vocalista da célebre banda rock alemã Die Toten Hausen) parte para uma viagem de “trabalho” em Palermo, com o fim de esclarecer o seu estado de misteriosa insatisfação. Apesar do sucesso profissional, o fotógrafo, marcado pela morte da mãe, começa a sentir o tempo como mera escassez de minutos até ao fim. E se na sua primeira metade Palermo Shooting é a instalação da “suspeita” em Finn, na fria Dusseldorf natal de Wenders, a segunda parte corresponde a uma desterritorialização como forma de exorcismo interior, ganhando a obra contornos de travelogue/thriller místico (exorcismo e viagens essas, tão caras a Wenders).

O mais constrangedor é a limpidez de tudo isto: a clareza do alter ego sempre vitimizado de Wim Wenders e o ressurgimento dessa angústia latente de não pertença ao mundo dos grandes cineastas (que o falhanço das últimas obras incutiu de novo no realizador). Assim, há uma pressa de nova aproximação ao mundo autoral, como se precisamente o tempo nunca fosse agora, mas sim uma corrida pela afirmação, como ilustra o final do filme. E nessa corrida, Wenders visita Antonioni (o fotógrafo de Blow Up), Bergman (a célebre composição da morte em The Seventh Seal), a morte da imagem barthiana, o expressionismo, os sonhos “gondrianos” e até um certa tensão surreal que em Lynch seria ironia da desconstrução e que em Palermo Shooting se converte em superficialidade.

Nesse sentido, a digressão da obra de Wenders não é pelas ruas de Palermo, não é sequer pelo conflito de uma personagem que vê o tempo a passar inexoravelmente. É sim um road movie pelas identidades que Wenders gostaria de ter assumido. Por isso, filma as pessoas, as ruas, com uma pressa de as ter nos seus planos, uma urgência de ilustração simbólica, onde o que ganha protagonismo é a câmara em si e não o lado de lá. "O estranho caso de Wim Wenders" é precisamente o análogo ao dilema do filme de Fincher: o envelhecimento ao reverso, não de dum corpo físico mas de um corpo de ideias.

Uma das personagens diz, a certo momento, que a imagem fotográfica é como que a morte do momento, da realidade, o inverso do próprio cinema. Acrescentamos nós que filmar uma história onde todos os seus elementos tudo fazem como se estivessem a ser observados pelo espectador é, senão o inverso do próprio cinema, pelo menos uma entropia desinteressada do mesmo.

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