quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A obra de arte que temos cá dentro é que é a nossa pátria

A frase que chamamos ao título é de Fernando Lemos, nome maior do surrealismo português, retratado em Luz Teimosa, documentário integrado este ano na competição nacional do Doclisboa. Para além da ressonância poética da expressão, este parece ser um bom ponto de partida para uma leitura do filme de Luís Alves de Matos. Lemos é um homem de quase 90 anos, a viver em S. Paulo, em quem, quer a arte, quer a vida, ambas verso e reverso da mesma rebeldia “avisada”, deixou marcas. Há um falso apaziguamento nas suas palavras, uma noção de revolta, contida pela sabedoria da idade. Se o artista fala da pertença a uma pátria como uma noção de menor importância subjugada à grande casa que é a sua arte, quem acredita? O preto e branco com que Alves de Matos filma o regresso do artista a Portugal, quase sessenta anos depois da sua fuga ao regime salazarista (em oposto às sequências solares e brincalhonas em S. Paulo), juntamente com a fotografia que Lemos faz desse local deixado para trás onde se definiu artisticamente numa geração surrealista composta de nomes como Fernando de Azevedo e Vespeira, mostram que a questão da pertença é ainda uma ferida que este insiste em fechar.

Nos últimos anos o documentarismo português tem mostrado particular atenção aos seus artistas fundadores de uma ideia de arte forte, significativa, como atestam, só para citar alguns exemplos, filmes como Pintura Habitada de Joana Ascensão, sobre Helena Almeida; Autografia, o olhar de Miguel Gonçalves Mendes sobre Mario Cesariny; ou jotta: a minha maladresse é uma forma de délicatesse, de Salomé Lamas e Francisco Moreira, sobre a artista plástica Ana Jotta. Em todos estes, assim como em Luz Teimosa, há uma preocupação de limpidez cinematográfica que deixa em primeiro plano os artistas retratados a sós com a sua obra e personalidade. As consequências dessa opção fazem pensar os filmes como dependentes da pessoa que retratam. Ora, o fotógrafo, artista plástico, poeta, pintor, Fernando Lemos está, nas suas próprias palavras, num processo de “curar-se por dentro para que a morte não seja velhaca”, para que a morte o encontre de forma digna e não o esqueça.

Essa soturnidade do artista faz de Luz Teimosa um filme complexo na forma como articula essa serenidade última com palavras de rebeldia, pertencentes a um passado em que o surrealismo tinha o dever estético e moral de acrescentar coisas ao real. Nesse sentido, trata-se de uma obra que apanha para si esse princípio, fazendo uso de uma linguagem surpreendente clara, mercê também da experiência do seu realizador (Fernanda Fragateiro – Lugares Perfeito; Ana Hatherly – A Mão Inteligente; João Penalva – Personagem e Intérprete) que coloca todas as ideias de realização no lugar certo. Trata-se de um olhar linear e onde pontuam ideias um tanto ou quanto rigidificadoras do resultado final: a oposição de que falámos preto e branco / cor; o regresso de Lemos a Portugal e encontro com Maria dos Anjos, uma criança, agora senhora, que Lemos fotografou em 1951; os planos estáticos de ambos; ou mesmo as sequências da leitura de poemas ou apresentação das suas fotografias. Dir-se-ia que há uma disciplina de métier sobre o artista que se definiu como “indisciplina em movimento”. Desta forma, veja-se Luz Teimosa como filme dialéctico onde quiçá a luz das portas, das janelas, do ar que entra, seja mesmo o que de mais indomável possui.

O filme passa dia 15 de Outubro, às 19:00, no Grande Auditório da Culturgest, com repetição dia 19, às 20:45, no Pequeno Auditório. A Real Ficção, produtora do filme, tem agendado para o mês de Novembro o lançamento em sala.

2 comentários:

  1. Que post interessantíssimo. Fiquei com enorme vontade de ver esse filme!

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  2. Caro Carlos, mal puderes envia-me o teu endereço de e-mail para o meu e-mail (cinemanotebook@gmail.com). Um abraço.

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