quinta-feira, 31 de maio de 2012

Fé no Texas

 
É inegável que face a Texas Killing Fields, realizado por Ami Canaan Maan, a filha de Michael Mann, existe a forte tentação de antecipar um talento “quem sai aos seus”. Tendência reforçada não só pelo dedo do pai na produção do filme, do argumento de Don Ferrarone (tecnhical adviser em Heat e Miami Vice), mas sobretudo por se tratar de uma obra que assenta nas mesmas paragens do policial. E não será escandaloso começar a traçar hipóteses ainda que o futuro nos prove errados. Como no universo de Mann pai, Texas Killing Fields exibe uma atmosfera que extrapola do modus clássico do género – o metódico procedimento para alcançar o criminoso - e que aqui é sobretudo direcionada para o poder da lei (moral, cristã, de princípios) ante a vastidão selvagem dos “killing fields” texanos. Desta feita, a primeira longa - metragem de Ami Maan parece uma espécie de Blood Simple de onde de retirou cirurgicamente o humor, deixando o negro e uma dose maciça de curiosidade e crença. O seu par de protagonistas, os dois detectives, o crente e o descrente ou o nova iorquino e o texano, avançam no espaço para descobrir a identidade de um potencial serial killer. Contudo, esse mistério é consumido pela presença desses campos, plenos de fumo, mortíferos (o espaço a indicar-nos o conflito, a ser pedaço de um “viver baixo”, sem escrúpulos, vício texano). É nesta contaminação espacial que evolui  a mecânica das personagens que querem ver, compreender ou refugiar-se desse estado de vício. Neste, assiste-se a uma “máquina” psico-geográfica em ação: ela mata os inocentes, mas também se auto-aniquila, oleada, prescindindo da ação policial. Lembremos que em relação às mortes finais, a justiça é obtida por mão própria dos “injustos”. É uma ideia ousada esta a da relação constitutiva do homem interior pelo espaço que o habita, mas não particularmente inovadora: Ford fez isso com o seu Monument Valley, mesmo Wim Wenders intuiu essa relação para propósitos de libertação com Paris, Texas. Contudo, esta intencionalidade de Ami Maan, o querer dar um passo maior que a perna (leia-se perna aqui como algumas e naturais limitações técnicas de Texas Killing Fields, desde o rendilhado musical a encobrir muitas cenas, passando pelo digital de mão nervosa, ao slow motion como efeito televisivo), augura coisas boas. E mesmo essas limitações servem, não raras vezes, essa premissa de contaminação, de eficiência policial e psicológica herdada de linhagem privilegiada. Exemplos? O contraluz no interior das viaturas da polícia, as máquinas de fumo que quase “vemos”, embora off, alimentam esse puxa-puxa de cada detective a querer canalizar o filme para o seu espaço de conforto. Esta angústia interior das suas personagens e desorientação espacial dos valores permitem pensar um lugar primitivo onde pode crescer o talento de uma cineasta. Lugar bem distante da histeria estética e procedimental que inundou o género policial no local onde este ainda luta para sobreviver, a televisão.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Abriguemo-nos



Embora não tenhamos visto ainda Shotgun Stories, o filme que colocou Jeff Nichols na mira da cinefilia, há na sua segunda obra, Take Shelter, um potencial comparativo com inúmeros filmes, géneros, quase interminável. Não que este seja um mero jogo de referências mas sim um discurso particularmente hábil na forma de as baralhar, ao ponto de construir um "género" que tudo acolhe. É dessa mistura de realidades (que compõe no fundo a Realidade) que é, em última instância, necessário “procurar abrigo”.

Curtis é um homem que prevê a eminência de uma enorme tempestade. Quando confrontando com esse pesadelo de devastação quer defender a sua família e construir um abrigo. Esta ideia obsessiva provém de um longo imaginário dos disaster movies que desde cedo trabalhou uma espécie de complexo de culpa do ser humano face à manipulação tecnológica da natureza. Obviamente que as duas guerras mundiais, a ameaça nuclear, introduziram poderosas variações no tema. Recordamos, entre inúmeros exemplos, o episódio da conhecida série The Twilight Zone intitulado também The Shelter (1961). Neste, a ameaça de um ataque nuclear põe várias famílias suburbanas contra a única que possuía precisamente um abrigo. Se aí a catástrofe era um pretexto para falar do pânico social, o filme de Nichols já surge num trajeto muito distante que fala da natureza como sintoma da catástrofe do eu. Melancholia, de Lars von Trier, abjecte-se ou louve-se, era também isto: a sensibilidade apocalíptica da extinção da humanidade vertida para um estatuto ontológico. Essa disforia da técnica mostra, em ambos os filmes, que a “resposta” da natureza tem consequências interiores. Não é por acaso que Melancholia é um filme que se segue à depressão do seu autor, ou que Curtis saiba que a ameaça Maior é menos a natureza, de céu digital revolto, e mais a linha de aparição/extinção da sanidade e da loucura. Como documentar racionalmente, na primeira pessoa, a fuga da própria razão? Supremo pesadelo esse, o de uma técnica que nos permitirá algures, ver-nos a nós próprios a enlouquecer.

Mas este trajeto de paranoia é ainda maior, ou surge em turbilhão, expandindo-se incontrolavelmente.

É que a tempestade que aí vem é a ameaça da ordem, da materialidade: é metáfora crise, é metáfora digital, é metáfora de perturbação amorosa. Que fazer com todo este resíduo poluente da metáfora? Podemos apenas falar do seguro de saúde muito vantajoso do emprego de Curtis que permitirá à sua filha colocar uma prótese auditiva ou das férias de Verão para o qual o casal poupa, ou mesmo das contas feitas a quanto alimento é necessário por semana a um ser humano para sobreviver num refúgio. Podemos apenas pensar nas condições que Samantha (a esposa de Curtis) põe para não sair de casa. Ou da introdução das sequências digitais no universo classicista do cinema de Jeff Nichols e não falar de como chocam. E podemos não o fazer pois não passamos todo o tempo de Take Shelter à espera de uma tempestade. Ou de um diagnóstico dos tempos e da pessoa. É possível que ainda subsista uma certa vontade fetichista de romancear a última noite, os últimos eventos, a derradeira crise da existência. Contudo, a força que nos ocupa (nós todos) é bem mais a de perceber que traços permitem ligar todo este “mal-estar”. E nesse trajeto apocalíptico, de sanidade, Nichols limita-se a mostrar o enrodilhar como estratégia de exposição. E isso já é muito.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Dark Shadows- Tim Burton


A cada novo filme de Tim Burton há uma dúvida que começa a instalar-se: como distinguir a recriação artística do mesmo tema como marca de autor e o labirinto obsessivo e laxante de figuras que compõem um imaginário formal? Esta nossa inquietação conduz-nos a uma outra: como sobrevive o autor de Nightmare Before Christmas no interior de uma Hollywood que a cada pirotécnia audiovisual se expõe cada vez mais como “máquina de impossibilidade” a mostrar a catástrofe sistemática da experiência estética do cinema?  Há que perceber que a estética digital no cinema é ainda só um bebezinho a fazer “birras estrondosas”. Ela apenas ainda tenta mimar esteticamente os mecanismos fragmentários de (des)atenção do humano, com esse movimento incessante, rápido, inebriante. Se o movimento está na base da e-moção, os próximos anos desta estética perceberão necessariamente que essa emoção, pode ter como base exterior um aturdimento visual, mas precisa de construir a sua dimensão interior. O cinema neo-clássico ainda não consegue criar ficções que reencadeiem politicamente o espectador. Resultado: nobody cares, yet.

Perante isto, tudo é invadido de um “colesterol narrativo” que serve o efeito. Em Tim Burton, perfeitamente imerso neste universo, o efeito é interessante. Isto porque já desde o início da sua carreira que o norte-americano é sobretudo um experimentador plástico, cromático, numa carreira de homenagem ao género fantástico, aos ambientes série B, reescrevendo o seu imaginário gótico-familiar (infantil?) por sobre essa herança. É mantendo essa sua posição de iconoclasta que Tim Burton consegue “sobreviver” na paisagem mainstream como autor munido do seu ator fetiche, Johnny Deep, que vai modelando, multifacetando como rosto chave desta tarefa em continuum de revisitação do imaginário fantástico. Neste árduo trilho de sobrevivência de um “artesão”, Dark Shadows, para além de uma coleção interminável de referências ao género, que vai deste Deep-Nosferatu a True Blood, e da premissa de choque e gag de um vampiro do século XVIII que acorda nos anos 70, pouco tem a dizer. Ou melhor, toda a construção de cenários, da composição em profundidade ou do esoterismo da representação (todos gozam muito, especialmente Eva Green, com esta oportunidade de se ser “inteligente” no seio de uma oportunidade desmiolada), que é o que é verdadeiramente “dito” em Dark Shadows, surge acabrunhado nesse borrão narrativo que os envolve. O carregamento energético de detalhes redundantes acabam por homogeneizar um bonito “bolo” digital que parece a cada momento querer extrair as suas impurezas, isto é, a presença humana. Os atores de carne e osso, por mais malabarismos que façam, estão sempre em background como presença incomodativa parecendo introduzir no sistema uma falha incompreensível. Desta feita, a criação de ambientes parece transcender o efeito da sugestão e funcionar como recreio para entreter as criaturas em que se tornaram os espectadores. No fundo, se são capazes de me perdoar a expressão, é como se estivéssemos a ver um Tourneur só que explicado para atrasados mentais.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Balanço do IndieLisboa '12


Após dez dias de cinema de chancela indie que permitem ao panorama semi-claustrofóbico da distribuição nacional (e lisboeta) respirar um pouco, deixem-me que alinhe algumas ideias sobre a nona edição do IndieLisboa.

Mantendo a concorrência sobretudo do Lisbon & Estoril Film Festival e até do Doclisboa pela exibição de algumas obras, este é um festival que soube ao longo dos anos posicionar-se muito bem e crescer sim mas nunca desvirtuando o seu espírito, nem as relações de cumplicidade com certos autores, programadores e festivais (como o demonstrou a interessante homenagem este ano à Viennale). Além de termos tido a oportunidade de continuar a seguir a obra de realizadores que dispensam apresentação como Ferrara, Herzog, Solondz, etc, e nomes ainda semi-desconhecidos com enorme potencial como Dominga Sotomayor, Radu Jude, Jessica Krummacher, parece-me relevante colher lições do ritmo e energia do festival.

 Quanto ao seu ritmo diga-se que em muitos casos (não vou adiantar nomes) os festivais crescem ao ponto do gigantismo, de se tornarem incomportáveis na sua dimensão para o público. Quero dizer que passa a ser impossível a muito público sair destes festivais com alguma impressão que apanhou os momentos mais relevantes do mesmo, tal o número de eventos e sessões. Um bom exemplo da dimensão mediana, exceção à minha regra de não referir exemplos, é o sentimento agradável com que se sai de um festival como o MOTELx. O IndieLisboa, sendo um evento maior, penso ter sabido crescer  de forma consequente, não fazendo do Festival apenas um megaencontro de personalidades das diferentes áreas do cinema, privilegiando a existência de duas ou três rotas possíveis, não mais, criando assim a ideia aos seus espectadores de que poderiam viver (e ver) algo em comum. Em segundo lugar gostaria de escrever uma coisa que se sente mais e se explica menos: a energia do IndieLisboa, apesar do trabalho árduo, dos inúmeros eventos e convidados, dos contratempos (que os há sempre), pareceu-me sempre ser muito positiva. É dessa vontade que parece ainda permanecer pura de mostrar os filmes e os seus autores que o IndieLisboa se alimenta no sentido de criar uma reunião cultural benéfica, alheia a influências ou ruídos mediáticos de fundo (sejam eles económicos, políticos, institucionais, etc.)

Termino esta minha breve apreciação com os cinco melhores filmes que pude ver no festival (excluindo obras anteriores a 2011), filmes que caso não tenham distribuição nacional se aconselha vivamente a arranjar por meios próprios.

1-    Vivan Las Antipodas! de Victor Kossakovsky
2-    “Toata lumea din familia noastra" de Radu Jude
3-    “De Jueves a Domingo” de Dominga Santiago
4-    “Bestiaire” de Denis Côté
5-    “L’Estate di Giacomo” de Alessandro Comodian


Publico ainda um top 5 que reúne as preferências do Ordet, do CINEdrio (Luís Mendonça), Numa Paragem do 28 (João Lameira), In a Lonely Place (Miguel Domingues) e Breath Away (Ricardo Vieira Lisboa).    

       1 – “Toata lumea din familia noastra”, de Radu Jude
       2 - ”4:44 Last Day on Earth”, de Abel Ferrara
       3 - ”Vivan Las Antipodas!”, de Victor Kossakovsky
       4 - ”Michael”, de Markus Schleinze
       5 - ”De Jueves a Domingo”, de Dominga Sotomayor, ex aequo com “L’estate di Giacomo”, de Alessandro Comodin

Fica assim encerrado o capítulo IndieLisboa 2012 e ficamos à espera que esse espírito de independência paire o resto do ano. 

sábado, 5 de maio de 2012

Dia 9 no Indie - Quando as formigas vão para sítios altos é porque o rio vai subir


 Talvez tenham bastado dois filmes para que o russo Victor Kossakovsky se tenha tornado um dos maiores nomes do documentário contemporâneo. Falamos de Belovy (1994) sobre a vida de uma agricultor russo e seu irmão, e Wednesday 19.07.1961, que segue as vidas de 74 pessoas de Leningrado que nasceram no mesmo dia do realizador. Deste então a cada nova obra as expectativas crescem. Tal foi o caso com Vivan las Antipodas!, exibido ontem na Londres na Secção Pulsar do Mundo (repete no domingo, pelas 14:30, no mesmo Londres). Kossakovsky explica que estava um dia numa vila argentina e que, ao ver um homem pescar numa pequena ponte, pensou o que aconteceria se estendêssemos a linha até ao outro lado do mundo, que imagem nos aguardaria? Nasce assim a ideia de procurar os poucos pontos do planeta onde os antípodas (locais perfeitamente opostos no planeta em linha recta) correspondem a duas regiões em terra. Como diz ainda o realizador: "por vezes uma ideia entusiasma mas a realidade acaba por mostrá-la menos capaz do que pensávamos inicialmente. Com Vivan La Antipodas! foi o oposto" e os pares de antípodas (Argentina/China; Espanha/Nova Zelândia, Hawaii/Botswana, Chile/Rússia) e suas personagens - pescadores solitários, guardadores de faróis, vendedores de peixe, agricultores, etc. - habitam os espaços exatos para lhes extrair essas imagens “opostas” que estavam na mente do realizador. Perante tal realidade há duas posturas. Por um lado, é possível ser ansioso, amante do sentido e da seriedade convencional, da “horizontalidade” e não ver no filme no Kossakovsky mais do que poema visual e sonoro, sem limites ao seu lirismo, histriónico, encantatório, uma jiga joga que usa o mundo como “recreio” da criação. Mas por outro lado, até pelo cuidado de citar Lewis Carrol no início, Victor Kossakovky quer abolir a ditadura da horizontalidade nos seus planos, quer explorar à la limite o uso de sons autóctones rasgando-lhes a origem e dando-lhes outra dimensão visual (como seria se o tango fosse chinês?), percorrendo de uma ponta à outra do mundo apagando as metáforas e extraindo dele linhas, tons, texturas comuns. No Hawaii a lava negra arrefecida assemelha-se à pele de um elefante envelhecido no Botswana. Na Nova Zelândia uma baleia morre e vem dar à praia, enquanto no seu oposto, em Espanha, as borboletas pousam na rocha. Estas imagens que se vão formando e estilhaçando de uma ponta à outra do mundo, ao contrário de filmes como a trilogia de Godfrey Reggio (Koyaanisqatsi, Powaqqatsi, Nagoyqatsi), Baraka de Ron Frickle, ou ainda a opus ensemble que é Life in a Day, não querem ser testemunho de nada, nem da beleza do mundo ou da sua integridade. O gesto da realização de Kossakovsky é outro e por isso abisma: é sempre na linha da intimidade que o russo trabalha, lutar pelos momentos de individualismo no maior palco possível, esse tal mundo como “recreio”. 

Nota: dava jeito que gente como Iñárritu, antes de efabular com tantas certezas sobre como somos assim e assado, como uma espécie de “astrólogo invertido”, desse uma vista de olhos nisto.    

 
Kleber Mendonça Filho é crítico, programador de cinema no Recife e após várias curtas-metragens eis que se estreia no grande formato com O Som em Redor que arrecadou o prémio FIPRESCI no Festival de Roterdão deste ano. Este “slice of braziliana”, como vem etiquetado, é um filme bem escrito, em mosaico, que tenta recriar com realismo o ambiente protegido de alguma classe privilegiada brasileira e os seus “bunkers”, leia-se condomínios privados com equipa de segurança e tudo. A comandar a "famiglia" está o ancião Francisco que protege os netos que vivem na mesma rua e ordena o que pode e o que não pode. Se começámos por destacar o argumento do O Som em Redor é porque ele cria situações e personagens suficientemente importantes para, sem inovar, poder expor o que o trouxe a Portugal: a sua montagem sonora como sintoma de permeabilidade da arquitetura deste espaço,  ela por sua vez sintoma da constituição de redes emocionais assentes em tiques sócio-urbanos. Agora arrisquemos uma ideia: o filme de Kléber é uma espécie de Requiem for a Dream mais perspicaz pois prescinde da adição. Naquele, as portas, as máquinas de lavar, os ascensores, os apitos anti-cães, o barulho de fundo dos plasmas ritmam essa atmosfera de desconcerto, parecendo poluir o agir do microcosmos que o cineasta brasileiro tem debaixo de olho. E nesse processo filma-se, helás! a “contaminação psicanalítica” da riqueza, embora isso já sejam contas de outro rosário...

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Dia 8 no indie - O Verão alemão e o Verão italiano


Basta ter presente algumas das linhas mestras do história do pensamento alemão, ou mais particularmente algumas luzes sobre a evolução do seu cinema, para imediatamente perceber do lugar deslocado que Formentera de Ann-Kristin Reyels não pode deixar de ocupar. Que ligeireza inaudita é esta que percorre um filme assim sobre sentimentos? Bem sabemos que o casal de protagonistas, Nina e Benno, está de férias na conhecida ilha espanhola que dá ao nome ao filme, situada perto de Ibiza, e que estes se fazem rodear de amigos hippies, despreocupados, longe do stress de Berlim. A proposta parece ser mesmo essa: como é que um espaço de liberdade, solar, pode influir nas perspectivas de futuro de uma relação urbana, com ritmos organizados para o trabalho? Embora a realizadora procure que os raios de sol se infiltrem nos seus planos e deixe algum tempo para que as suas personagens percorram e usufruam da ilha, isso não se afigura suficiente para essa contaminação psicológica. Os planos do casal a andar de mota, os diálogos durante as refeições com os amigos de Benno, a sequência da festa, o “sábio” artífice mais velho, os próprios micro-conflitos que crescem entre o casal não rimam com o espaço psicológico dos personagens, com o seu dilema, e depois, perto do final, com a sua aparente resolução. A própria solidão, sobretudo de Nina pela ilha, mas também em Ibiza, é, mais do que um truque de densidade, ou uma "avventura" antonioniana, um espaço de desolação da própria mise-en-scène.


O realizador italiano Alessandro Comodin explicou-nos, no final da sessão do seu L’Estate de Giacomo, que foi o facto do irmão mais novo do seu melhor amigo, Giacomo, agora com 18 anos, ter feito uma operação para, pela primeira vez, obter algum grau de audição o ponto de partida para o seu “documentário”. As aspas aplicam-se pois, embora Comodin tenha acompanhado pedaços de um Verão de Giacomo com Stefania (sua amiga e irmã mais nova do realizador) no norte de Itália, junto a um rio, os mecanismos de improvisação estão associados a um feeling ficcional. É que a observação dirigida do caminhar pelo bosque, das brincadeiras com a água e areia à beira do rio como formas de desfrutar a vida e de relacionar um tempo e uma natureza aos temas insignificantes da felicidade, são-no comandadas pelo olhar de um realizador (28 anos) que já vê esses tempos a uma distância de “charme”. O que não tira mérito ao filme, pelo contrário, apenas aguça a sua dimensão ficcional sublinhada pela utilização da música, a escrever nas imagens, um imaginário pop, a trazê-la para a exaltação de uma infantilização adulta, como revelado na influência criativa do seu montador João Nicolau, e da afinidade estética de Comodian com Miguel Gomes. Embora já tenha arrecadado o Pardo d’oro Cineasti del presente - Premio George Foundation no Festival de Locarno, L’Estate di Giacomo, nessa passagem dos sentidos pela natureza, pelo desfrute telúrico (também próximo dos universos de Lisandro Alonso ou até Kelly Reichardt), é também um candidato ao prémio final.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Dia 7 no Indie - Para onde olham os animais e o que vêem?


Mais um dia de competição e mais uma talhada a essa “coisa” ainda apelidada de instituição: a família. Desta vez coube ao austríaco Sebastien Meise com Stillleben (Natureza Morta). Bernhard, rapaz dos seus trinta anos, descobre uma carta que o pai sexagenário escreveu a uma prostituta. Na carta ele pedia-lhe que fizesse uma data de coisa, como é normal nestes casos, mas chamava-a de Lydia, o nome da sua filha e irmã de Bernhard. Está exposto o nó do conflito: o assédio em criança de Lydia pelo pai. Diz-nos o air du temps que o abuso sexual de menores começa lentamente a ser mais um tema que o cinema vem desconstruindo, “embrulhando-o” no discurso que relativiza culpas e julgamentos isentos. Um pouco como vem acontecendo com o próprio assassínio em série, com algumas obras de subjetivizam e empatizam o olhar do criminoso. Digamos de outro modo: um gigantesco movimento que já começou pelo menos nos anos 60 e que, lentamente, faz ver o “mal”, venha ele de onde vier e atinja seja quem for, como uma entidade digna de compreensão. Mas não nos afastemos. A primeira obra de Meise tem essa “preocupação amoral”, sempre expressa através da espectralização das personagens, dos esparsos diálogos entre os membros da família, dos espaços de penumbra ou luz sórdida. Percebemos que haja uma natural aproximação ao que o realizador quer expor mas duvidamos que essa frieza austríaca exposta tenha algo a revolver no seu interior. Ou por outra, da "natureza morta" em Stillleben, nem assistimos à sua morte, nem nos parece conter, na formalidade e contenção dos seus planos, alcance suficiente para essa tarefa de contaminar o maniqueísmo dos atos. Ainda assim, diga-se que o plano final, sobretudo pela presença de Fritz Hortenhuber (o pai), parece trazer-nos uma leitura retrospectiva de todo o filme com esse filtro do sentimento, ainda que contido. Parece é, claro, tarde demais para assumir ou ressuscitar a natureza e as atrações familiares/sexuais. Embora não tenhamos visto Michael, de Markus Schleinzer, pelo que lemos aqui, a hipótese de uma double bill não seria mal pensada.


Ontem foi ainda tempo de espreitar o último documentário de Denis Côté, Bestaire. A primeira sequência, cujo som depois fecha o filme, mostra-nos um grupo de jovens que desenha o modelo de um animal embalsamado no centro da sala. Quando a câmara de Côté vai para o exterior, o parque Safari no Quebec, começamos por ver Bestiaire na sua proposta de circuito de olhares: humano, animal, mecânico (da câmara) e como estes se entre-afectam. Não está em causa um olhar sobre o espaço que mantém os animais (Zoo, de Frederick Wiseman, 1993), nem a proposta de equivalência de estatutos homem/animal (Zoo, de Bert Haanstra, 1962). Antes, o filme do francês parece quer visualmente participar desse diálogo encetado pelas ciências naturais e humanas, sobre qual a fronteira ontológica entre o homem e o animal, o que os diferencia, como é que o seu olhar “fechado”, insondável, é apanhado pelo olhar “aberto” do humano, ou ainda, pelo olhar sem gaze, da neutralidade aparelhística da câmara de filmar. Recentemente traduzido entre nós O Aberto, de Giorgio Agamben, procura precisamente trabalhar essa fronteira homem/animal, reposicionando fronteiras e operando uma crítica aberta à maquina antropológica  que “embate” sempre nessa forma humana de posicionar o animal no mundo. Embora o cinema, e especificamente a seleção pela montagem, não permita a exclusão total do olhar humano, a continuidade do registo das imagens do olhar animal, da sua presença, possuem esse potencial “inumano”. Ou pelo menos de dois olhares, o animal e o mecânico em choque, como confronto de duas presenças imperscrutáveis. Não deixa ainda de ser curioso que é também quando o ser humano observa e regista o mundo, como na já referida cena inicial, o momento em que este mais se encontra desprotegido, menos ator desse tédio, de alteridade que, como refere Agamben, mais revela o aberto no humano vedado ao animal. O olhar das avestruzes, macacos, lamas, o seu vai vem agitado ou sereno, o seu movimento no espaço exíguo das jaulas dão a Bestiaire uma forma misteriosa que conduz a sua montagem simultaneamente para uma “pureza” do género documental e para um simulacro do que seria o “fechado” de uma obra artística.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Dia 6 no Indie - Às vezes não é fácil sair de casa





Ao contrário de outros países como a República Checa, Polónia ou Hungria, que mantiveram algum cinema oposicionista durante o período ditatorial, a Roménia entre os anos 60 e 80 esteve perto do ocaso total. Não admira então que, após a queda de Ceausescu, na revolução de 1989, se tenha respirado o "princípio do fim do mundo", uma espécie de ano zero do cinema romeno. Contudo, haveria que esperar mais quinze anos até que as crescentes estruturas de financiamento do seu cinema, aliado à estrutural distância que os principais cineastas romenos, agora na casa dos 40, mantinham face ao grande trauma do regime de opressão, dessem frutos. E deram-no mais particularmente em 2005 através do reconhecimento internacional que The Death of Mr. Lazarescu de Cristi Puiu obteve através da prémio Un certain regard no Festival de Cannes. A odisseia sarcástica pelo sistema de saúde burocrático que leva um paciente em ambulância de hospital em hospital foi o primeiro filme romeno a obter distribuição internacional em muitos anos e o início “oficial” do que se viria a chamar o novo cinema romeno. Nos anos seguintes vários nomes importantes surgiriam como Corneliu Porumboiu (12:08 East of Bucharest), Cristian Nemescu (California Dreamin’), Cristan Mungiu (4 Months, 3 Weeks and 2 Days), só para citar os mais importantes.

Numa entrevista há uns anos à Sight & Sound, Cristian Mungiu negava a existência de um estilo próprio à nova vaga romena. Cada cineasta provinha de escolhas e valores diferentes embora pudesse existir outras coisas em comum: o humor, alguns mecanismos de rodagem, a atenção dada à representação, etc. Seja como for, a revolução de 89 foi um impulsionador natural do universo criativo deste grupo de cineastas, sendo que o retrato da realidade romena, surge pelo filtro seguro, anti-traumático, da tragédia individual, vista a partir de uma ironia construtiva. Como quem diz: “vejam que parvoíce que foi tudo aquilo...”

Este prolegómeno serve sobretudo para contextualizar o aparecimento de Everybody in Our Family, segunda longa-metragem de outro talento desta geração romena, Radu Jude, na competição internacional do IndieLisboa. O filme estreado na Berlinale este ano, prolonga uma relação entre o festival e o autor que remonta já às suas curtas-metragens The Tube with a Hat (2006) e Alexandra (2007) e à sua estreia no formato longo com The Happiest Girl in the World (2008).

Everybody in Our Family continua o tema privilegiado desta competição internacional, a família, tema iniciático, ou não fosse a secção destinada exclusivamente a primeiras ou segundas obras. Esta família, que a produtora do filme advertiu na abertura da sessão ter pontos de contacto com a situação familiar do próprio Radu Jude, parece resistir apenas na sua formalidade. Marius, um homem um pouco alienado no mundo literário e na sua vaga depressão pela falta de trabalho, reúne todas as suas energias positivas para o fim-de-semana com a sua filha Sofia de 5 anos, um dos poucos momentos em que a lei ditou que possa estar com ela em virtude do divórcio da sua mulher Otilia. O que parece ser um momento idílico de repouso e comunhão parental transforma-se lentamente numa espiral de claustrofobia e violência que revela a realidade dura e implacável das relações familiares.

Mas esclareça-se: esta escalada de tensão é um mecanismo útil e eficaz mas que interessa sobretudo pensá-lo do seguinte ponto de vista: “para onde é que isto nos leva?”. No filme de Radu Jude  essa escalada não é para ser assunto de auto-reflexão como em Funny Games de Haneke, por exemplo, nem sequer só uma forma de montar um ataque à natureza do conflito familiar. Ela é, e nisso reside o mais importante de Everybody in Our Family, um processo constante de passagem do drama ao thriller e do thriller ao drama, criando uma espécie de “thriller dramático” que espelha a complexidade que vai do sangue ao amor. Nesse processo de transferências constantes e verdadeiramente infernais não há forma de pensar a “direito”: é que a comunhão digna, da essência, cassavetiana, ao passar pelo umbral de uma porta com uma câmara à mão pode transformar-se num monstro belo, num observar emocionado e feliz do seu próprio enterro.

Além disso, o despojamento formal de Jude, o estar sereno dentro de casa, a braços com a luta dramática dos atores, permite investir nas nuances da realidade. É daqui que se pode falar de um humanismo cinematográfico que o cinema romeno só pôde fazer em contacto com uma liberdade recém adquirida e com um tédio ocidental que ainda não os consumiu. É tão ou mais empático o perdedor Marius que não consegue levar a filha de fim-de-semana como o é a ventoinha e o aquário da sala da ex-mulher no qual se passa uma das sequências mais relevantes do filme. É que o espaço confinado, a casa, da qual Radu Jude não quer sair até esmiuçar os porquês de uma separação, é um espelho fortíssimo da humildade, da falsa passagem da formalidade ao segundo plano que o cinema novo romeno parece veicular. Arriscamos que o sucesso de público desta vaga de cinema romeno venha sobretudo daí: dessa limpidez com que o um povo descreve a sua vida.

Ainda dessa passagem do drama ao horror faz também parte a dimensão sarcástica que só um olhar adulto como o do cineasta romeno pode veicular, ao ajudar a relativizar as pequenas grandes tragédias da vida. Nelas, eles como nós, o espectador, rimos com vontade de chorar e choramos com vontade de rir. É também nessa inversão que se torna claro que Everybody in Our Family é um dos mais fortes candidatos a vencer este IndieLisboa ‘12.

Ainda haverá mais uma oportunidade de ver este filme no dia 4 de Maio às 16:00 no S. Jorge. Não percam. 

terça-feira, 1 de maio de 2012

Dia 5 no Indie- O que é uma família funcional?


El Estudiante, primeira longa-metragem de Santiago Mitre, chega-nos a Portugal provavelmente com o “empurrãozinho” de Pablo Trapero, tendo sido seu co-argumentista nos seus dois últimos filmes: Leonera (2008) e Carancho (2010), este último estreado entre nós. Além disso, Santiago Mitre é mais um nome a figurar do clichet em que se tornou pertencer ao “novo cinema argentino”. A sua estreia na realização acarinha um tema duro, a política estudantil como gérmen da carreira política. O seu protagonista é, claro está, um estudante, Roque, que vem da província para a grande cidade de Buenos Aires e que progressivamente vai começando a tomar parte ativa nos lutas pelo poder estudantil na capital argentina. Filmado em sete meses na Faculdade de Ciências Sociais de Buenos Aires, com uma pequena equipa, El Estudiante parece querer introduzir-se documentalmente no espaço que retrata, privilegiando a câmara à mão não muito irrequieta, os planos apertados e sobretudo uma relação interessante com os elementos que compõem os interiores, as bandeiras, os cartazes, etc. Parece que rodeamos a questão. Sim, temos de o admitir. Indo fundo ao assunto diga-se que El Estudiante sonha com um ambiente denso, politizado, como aquele que Michael Mann montou em The Insider (1999), por exemplo. Não estamos seguros sobre qual a razão principal que o separe de tal objectivo, talvez sejam várias ao mesmo tempo: primeiro, o dilema político vivido pelo seu protagonista permanece sempre como ilustração; depois, está longe de estar “resolvida” a relação emocional/sexual de Roque, isto na ligação com o resto que é El Estudiante; por fim, essa passagem da pequena vila à cidade, nunca deixa de ser um tema em surdina que raramente emerge na obra. O resultado disto tudo é um filme que, sendo profundamente construído do ponto de vista da sua história (a voz off ocasional mostra essa “obsessão” da escrita), é igualmente lasso na sua capacidade de “agarrar” o espectador. Para quem vê de fora (leia-se, que não seja argentino) mais do que o alastrar do vírus da política no seu protagonista, fica-nos, de forma doce, algumas marcas históricas e antropológicas de um povo e de uma cidade. Marcas que se ligam mais à forma de olhar, de acabar uma frase ou uma conquista amorosa do que a uma ascensão ou queda em busca de poder no vazio.


A sessão de ontem da Sala 2 do Londres às 23:45 tinha gente a dormir. Faz sentido, era tarde. Mas a maioria estaria provavelmente com aqueles sorrisos que mantemos durante algum tempo quando alguém nos embaraça e não nos queremos desmanchar. É que o filme a que se assistia ilustrava na perfeição aquilo que a dada altura um polícia diz a outro quando, em noite cerrada, deixa seguir caminho uma jovem que passeava num carrinho de bébé dois “reborns” (bonecos hiper-realistas que parecem mesmo bébés), à berma da estrada: “Well, it is not necessary to understand everything...”. É assim Totem da alemã Jessica Krummacher. O seu filme de fim-de-curso (estudou na Munich Film School) é sobre a chegada de Fiona, uma empregada doméstica, a casa dos Bauer, uma família burguesa alemã repleta de, hum... idiossincracias. O marido que fica louco quando não encontra a sua t-shirt da Ferrari, ou que prefere dar comida aos coelhos (ou salada de batata à empregada) a estar com a família. A esposa, na menopausa, frustrada sexualmente, busca refúgio nos seus rituais no solário ou tratando do seu casal de reborns. Mas ainda há mais: a “vizinha” que entra e sai dos planos como uma aparição desnorteada, o cão de plástico, o cavalo partilhado da filha adolescente e por aí fora. Esta verdadeira enxurrada de bizarrias, onde o filtro de sanidade parece surgir pelos olhos de Fiona, não é, contudo, aleatório. Embora falte ainda a Jessica controlar alguns ímpetos da sua linguagem cinematográfica, que já não fazem parte da intenção inicial, percebemos essa desconstrução permanente da ordem nórdica. A “normalidade da loucura”, o inverso do livro de Arno Gruen, que a realizadora alemã quer trabalhar está sempre na linha entre a obscuridade permanente que nos impulsiona para o filme, e a aleatoriedade que nos repele. Em paragens próximas de Hundstage (2001) de Ulrich Seidl ou Taxidermia (2006) de Gyorgy Pálfi, estamos curiosos para perceber onde se vai instalar a intransigência desta germânica de inegável talento para dirigir um discurso sobre a irracionalidade em potência na mais profunda das ordens familiares.



É ao terceiro filme que vemos da competição internacional de longas-metragens do IndieLisboa que se afasta o espectro da frustração em virtude das obras até aqui apresentadas. De Jueves a Domingo da chilena Dominga Castillo é mais uma primeira obra mas desta feita de surpreendente maturidade e subtileza. Uma última viagem de uma família em desagregação investindo nos prazeres de um tempo “analógico” em família (canções, jogos, conversas) tendo como subtil fantasma esse gérmen da separação que passa ao lado do rapazinho mais novo e ao qual a irmã está atenta. Este jogo de percepções dos mais jovens e das relações, palavras e gestos encobertos dos mais velhos (o tesouro do argumento) só funcionam porque Dominga Castillo sabe exatamente como colocar a câmara por forma a captar aquilo que por comodidade chamaremos de “reserva da vida privada”. Desde o plano inicial em que o pequeno é tirado da sua cama, ainda de madrugada, para iniciar viagem, passando, por exemplo, pelo plano da relação da esposa com um “amigo” que encontram, visto na penumbra, com a câmara na outra tenda, a da família. Não raras vezes De Jueves a Domingo é de uma justeza total no que filmar e sobretudo em como filmar aquilo que é da qualidade própria do que pertence à intimidade. O plano muito aberto no final é precisamente esse espaço dado àquelas pessoas, como uma última oportunidade de viverem o que já não tem remédio. Claramente o melhor filme em competição até este ponto.