quarta-feira, 2 de maio de 2012

Dia 6 no Indie - Às vezes não é fácil sair de casa





Ao contrário de outros países como a República Checa, Polónia ou Hungria, que mantiveram algum cinema oposicionista durante o período ditatorial, a Roménia entre os anos 60 e 80 esteve perto do ocaso total. Não admira então que, após a queda de Ceausescu, na revolução de 1989, se tenha respirado o "princípio do fim do mundo", uma espécie de ano zero do cinema romeno. Contudo, haveria que esperar mais quinze anos até que as crescentes estruturas de financiamento do seu cinema, aliado à estrutural distância que os principais cineastas romenos, agora na casa dos 40, mantinham face ao grande trauma do regime de opressão, dessem frutos. E deram-no mais particularmente em 2005 através do reconhecimento internacional que The Death of Mr. Lazarescu de Cristi Puiu obteve através da prémio Un certain regard no Festival de Cannes. A odisseia sarcástica pelo sistema de saúde burocrático que leva um paciente em ambulância de hospital em hospital foi o primeiro filme romeno a obter distribuição internacional em muitos anos e o início “oficial” do que se viria a chamar o novo cinema romeno. Nos anos seguintes vários nomes importantes surgiriam como Corneliu Porumboiu (12:08 East of Bucharest), Cristian Nemescu (California Dreamin’), Cristan Mungiu (4 Months, 3 Weeks and 2 Days), só para citar os mais importantes.

Numa entrevista há uns anos à Sight & Sound, Cristian Mungiu negava a existência de um estilo próprio à nova vaga romena. Cada cineasta provinha de escolhas e valores diferentes embora pudesse existir outras coisas em comum: o humor, alguns mecanismos de rodagem, a atenção dada à representação, etc. Seja como for, a revolução de 89 foi um impulsionador natural do universo criativo deste grupo de cineastas, sendo que o retrato da realidade romena, surge pelo filtro seguro, anti-traumático, da tragédia individual, vista a partir de uma ironia construtiva. Como quem diz: “vejam que parvoíce que foi tudo aquilo...”

Este prolegómeno serve sobretudo para contextualizar o aparecimento de Everybody in Our Family, segunda longa-metragem de outro talento desta geração romena, Radu Jude, na competição internacional do IndieLisboa. O filme estreado na Berlinale este ano, prolonga uma relação entre o festival e o autor que remonta já às suas curtas-metragens The Tube with a Hat (2006) e Alexandra (2007) e à sua estreia no formato longo com The Happiest Girl in the World (2008).

Everybody in Our Family continua o tema privilegiado desta competição internacional, a família, tema iniciático, ou não fosse a secção destinada exclusivamente a primeiras ou segundas obras. Esta família, que a produtora do filme advertiu na abertura da sessão ter pontos de contacto com a situação familiar do próprio Radu Jude, parece resistir apenas na sua formalidade. Marius, um homem um pouco alienado no mundo literário e na sua vaga depressão pela falta de trabalho, reúne todas as suas energias positivas para o fim-de-semana com a sua filha Sofia de 5 anos, um dos poucos momentos em que a lei ditou que possa estar com ela em virtude do divórcio da sua mulher Otilia. O que parece ser um momento idílico de repouso e comunhão parental transforma-se lentamente numa espiral de claustrofobia e violência que revela a realidade dura e implacável das relações familiares.

Mas esclareça-se: esta escalada de tensão é um mecanismo útil e eficaz mas que interessa sobretudo pensá-lo do seguinte ponto de vista: “para onde é que isto nos leva?”. No filme de Radu Jude  essa escalada não é para ser assunto de auto-reflexão como em Funny Games de Haneke, por exemplo, nem sequer só uma forma de montar um ataque à natureza do conflito familiar. Ela é, e nisso reside o mais importante de Everybody in Our Family, um processo constante de passagem do drama ao thriller e do thriller ao drama, criando uma espécie de “thriller dramático” que espelha a complexidade que vai do sangue ao amor. Nesse processo de transferências constantes e verdadeiramente infernais não há forma de pensar a “direito”: é que a comunhão digna, da essência, cassavetiana, ao passar pelo umbral de uma porta com uma câmara à mão pode transformar-se num monstro belo, num observar emocionado e feliz do seu próprio enterro.

Além disso, o despojamento formal de Jude, o estar sereno dentro de casa, a braços com a luta dramática dos atores, permite investir nas nuances da realidade. É daqui que se pode falar de um humanismo cinematográfico que o cinema romeno só pôde fazer em contacto com uma liberdade recém adquirida e com um tédio ocidental que ainda não os consumiu. É tão ou mais empático o perdedor Marius que não consegue levar a filha de fim-de-semana como o é a ventoinha e o aquário da sala da ex-mulher no qual se passa uma das sequências mais relevantes do filme. É que o espaço confinado, a casa, da qual Radu Jude não quer sair até esmiuçar os porquês de uma separação, é um espelho fortíssimo da humildade, da falsa passagem da formalidade ao segundo plano que o cinema novo romeno parece veicular. Arriscamos que o sucesso de público desta vaga de cinema romeno venha sobretudo daí: dessa limpidez com que o um povo descreve a sua vida.

Ainda dessa passagem do drama ao horror faz também parte a dimensão sarcástica que só um olhar adulto como o do cineasta romeno pode veicular, ao ajudar a relativizar as pequenas grandes tragédias da vida. Nelas, eles como nós, o espectador, rimos com vontade de chorar e choramos com vontade de rir. É também nessa inversão que se torna claro que Everybody in Our Family é um dos mais fortes candidatos a vencer este IndieLisboa ‘12.

Ainda haverá mais uma oportunidade de ver este filme no dia 4 de Maio às 16:00 no S. Jorge. Não percam. 

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