segunda-feira, 4 de junho de 2012

Igual = Diferente



Nas primeiras páginas de Cosmopolis, Don DeLillo junta estas duas frases:

“The work was all the more dangerous for not being new”. E depois: “There’s no more danger in the new”.

De início pensei na clareza da ideia de que o que não é novo possui um certo grau de perigo porque já muita gente o fez (primeira frase). E isto porque (segunda frase), o novo representa um antídoto contra esse perigo. E logo a atualidade da coisa me ressoou no papel crescente reservado à originalidade e por aí fora. Mas o que intriga aqui é a expressão “no more”. There’s no more danger in the new. Quer dizer, houve um tempo, e neste sentido a frase é historicista, em que o novo era realmente perigoso. Mas hoje já não é. E a ver é bem verdade. Houve um tempo em que a vanguarda, a originalidade era um passaporte para um auto de fé, uma excomunhão, um asilo. Os exemplos são tantos: Sócrates, Séneca, Joana D’arc, Galileu, Giordano Bruno, etc, etc. Antigamente o novo não era propriamente bem visto. Havia uma forte pressão da sociedade para não extrapolar.

Mas então o que terá acontecido para esta inversão absolutamente clara em que o novo se tornou na exigência daquilo que, precisamente, integra? A originalidade como pressão para ser diferente. As tradições que mantinham agregados os usos da população humana no passado eram fortes e consideradas por todos. Na égide de um pensamento céptico, de abertura à dúvida permanente, a tradição foi levando pancada atrás de pancada. A tradição passa a ser vista como “defeito”, como imobilizadora e, posteriormente, formatada sob esse conceito absolutamente vital que é a “massa”. A tradição passou a ser o que fazem as massas. Fazer o que sempre se fez, ou faz, não é hoje um sintoma de saúde mas de “carneirice”. Ao invés,  triunfou o “thinking outside the box”, o discurso de fazer valer as suas skills, de mostrar  a sua própria excelência, ou, se não a houver,  inventá-la. A nossa extraordinariedade tornou-se uma obsessão. Ai daquele que passe por nós e que de imediato não nos sintamos tentados a virar a cara para ver o que tem a dizer ou fazer. Se assim for é só mais um (+1). Portanto, todos temos de ser especiais, agitar muito a carcaça para que olhem para nós: social, sexual e profissionalmente. É a sociedade da híper-performatividade como tique de sobrevivência.

Mas o que acontece, pergunto-me, quando já não existir ninguém ordinário? Quando toda a gente for espetacular, inteligente, gira, espirituosa, jovem? Quando já não existir uma só pessoa sem atributos maravilhosos, que não fale tão bem, que não seja tão elegante, virtuoso ou o melhor dos melhores a fazer o que quer que seja. A resposta parece simples: é que um bando de extraordinários é profundamente ordinário. Assim, faz-se full circle com a questão da ilusão que havia começado com esse “cenário postiço” em que vivemos, no qual, em fundo, parece que podemos escolher tudo, que a liberdade é esse bem inestimável. É que não é.  E essas opções são muito poucas. E cada vez menos. É como tirar uma foto na Bela Vista com um cenário por trás a dizer que estamos em Miami. É a mesma coisa. Se acreditarmos muito pode ser que Miami se concretize na nossa mente. Nós aliás sempre fomos extraordinários a acreditar. Os melhores de todos.

Leonardo da Vinci era um homem extraordinário em quase tudo. Perto da sua morte pediu no seu testamento que 60 mendigos acompanhassem o seu cortejo fúnebre. Sessenta pessoas que não podiam estar mais perto do que alguns chamam hoje, abusiva e tecnocraticamente: “escória”. De pessoas que, por via dos critérios do telemarketing se aproximam desse novo inferno na terra que é “falhar a vida”. Mas pergunto-me, quem, como Da Vinci, faria um pedido hoje assim? É que a verdadeira capacidade de se ser extraordinário, “new”, como diz DeLillo, pressupõe uma profunda vivência ordinária. As mensagens “you can do it”, ou “you are the size of your dreams”, que tudo e todos poluem, só se destinam a manter as pessoas na segurança e no “jogo” daquilo que é “novo”. Esse falso novo, cenário perfeitamente identificado, não deixa avançar. E avançar significa ser realmente novo. Só que novo no sentido de verdadeiro, do que nasce da limitação, do que não monta um show para terceiros.  Esse novo, sim, ainda é perigoso. Muito perigoso.

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