domingo, 21 de outubro de 2012

Primeiros dias do Doclisboa: o desenraizamento também é uma questão de olhares

Os festivais de cinema abrem e fecham sempre com pompa e circunstância (eventos dentro do evento, momento revista Caras ao qual muita gente vem mais marcar o ponto do que ver o filme em si). Sobre isso, nenhuma crítica em particular, na medida em que o evento pode ser também uma estratégia como outra qualquer do cinema chamar pelas pessoas. Este intróito semi-ressabiado serve para dizer que há muito era impossível obter bilhetes para ver o último filme do João Rui e do João Pedro A Última Vez que Vi Macau (2012). Por isso a minha entrada foi pelas “traseiras”, discretamente, para ver Nuukuria Neishon (Nuclear Nation, 2012), documentário do japonês Atsushi Funahashi sobre o êxodo da população de Futaba, local que alojava há décadas a central nuclear de Fukushima que sofreu rupturas na sequência do terramoto e tsunami que assolaram a região.

Entrei na sala ainda com as imagens de poesia que Paradjanov criou para a homenagem ao poeta Sayat Nova a ocupar toda a minha memória emocional [o filme é, claro, Sayat Nova (A Côr da Romã, 1968), que tinha visto umas horas antes]. E instalou-se imediatamente um choque que toda a frontalidade e composição dos planos do cineasta arménio (o vinho a ser despejado do cântaro, o plano picado da morte com o poeta estendido e as galinhas a derrubar as velas) faziam falsos raccords e surgiam desarmados pelo olhar instável, um pouco desleixado, dos primeiros planos de Funahashi. Enfim, penas da poesia sobre a realidade. É que é um olhar, o do japonês, que demora a instalar-se, titubeante, a entrar em dois espaços descaracterizados: Futaba, do qual as sucessivas catástrofes varreram a presença humana tornando-a numa paisagem de destroço quase impressionista, e os locais de exílio destes refugiados nucleares habitado agora por pessoas que estranham o local, a comida, o desenraizamento. Por isso o cinema aqui presente mostra-nos o combate que o documental trava consigo próprio quando entra nesses espaços que são no fundo os espaços do trauma, do cinema pós-traumático. Quando o ar se torna semi-respirável (literalmente) as câmaras entram e começa o dilema de explorar ou não, o que contar, como gerir a emoção. O cineasta japonês nisso é muito salomónico deixando que o lado procedimental do filme [lembro sobre esse “método” a obra-prima que venceu a competição internacional em 2005 Yan Mo (Before the Flood) de Yu Yan e Yifan Li acerca do realojamento dos habitantes de Fengjie perante a iminência da construção da barragem das Três Gargantas na China], acompanhado pelos seus 125 minutos, ao longo das quatro estações (um élan muito oriental) engrossem a estrutura do que quer filmar.

Há todo um mosaico de situações que apanham as impressões e os rostos dos sem-casa (que dormem num ginásio, que não têm dentes para as refeições que lhes são distribuídas, que entre a dor e a espera fazem aeróbica e ouvem concertos improvisados de covers manhosas dos Beatles), mas também o regresso temporário à terra da qual tiveram de sair. São os momentos que servem para ir buscar coisas que deixaram saudades [sapatos ou os DVDs de um senhor cinéfilo que relembra entre outros títulos Mad Max (As Motos da Morte, 1979), porque será?)] e em que Funahashi deixa entrar o vídeo (momento incrível) que um pai e um filho filmam na zona contaminada: menos de duas horas para prestar homenagem à esposa e mãe que faleceu na catástrofe; a duração limitada para os sentimentos. Obviamente que a nação nipónica, nuclear pelas piores razões, como sabemos, nunca permitirá que Nuukuria Neishon descarte um discurso anti-nuclear. O focar no presidente da câmara de Futaba, nos seus remorsos pela sua parte activa em ter perpetuado a aceitação da instalação da central de Fukushima no seu território [era um balão de oxigénio económico para a região, até descontos nas contas de electricidade tinham (!)], abre o filme a esse problema político de jogos estratégicos de poder, de supremacia do Estado em detrimento das pessoas. Mas sempre numa circularidade aberta entre emoção e activismo muito mais complexa. Um belo exemplo dessa célebre expressão de Levinas que me surge a propósito desta circularidade: “pensar através do outro”.  Esse outro mostra a reconstrução das pessoas para quem Futaba passa a ser uma homeland idílica, onde agora mumificam vacas sem ter que comer e que beber e à qual um dia regressarão. Reconstrução do papel do espectador que esperava uma lição mais asséptica, da lavagem que se segue à experimentação do inferno.

O primeiro filme que vejo na competição internacional chama-se Fogo e é uma co-produção mexicana e canadiana realizada por Yulene Olaizola. Não conheço a realizadora e espreito os dois títulos anteriores Paraísos Artificiales (Artificial Paradises, 2011) e Intimidades de Shakespeare y Víctor Hugo de 2008. Leio também sobre os temas serem sugestivos, o lado construído do estilo documental, o ennui, os cigarros, os takes longos, a influência de Pedro Costa. Tudo isto faz sentido nesta nova tentativa da realizadora agora sobre o processo de avanço da tundra na ilha de Fogo no norte do Canadá. Os seus habitantes têm de sair, o "fogo deu lugar ao gelo", a paisagem é inóspita. Parece cirúrgica a inserção da obra no centro do bom gosto da cinéfilia documental: os planos longos em tableaux nas reticências do fade to black, o desaparecimento da “ruralidade”, a relação visceral com a natureza (vai lá cortar uma árvore para eu ver como isso é belo), o vento, a orquestração dos diálogos (os planos dos interiores em que os habitantes saboreiam uma última bebedeira – “it’s good til the last drop”, em que se tratam por son, sir, boy, parecem reciclar para o documental o ambiente de Béla Tarr), a pose ascética dos que não querem partir. Parece que estou a caminhar no sentido de desfazer o contrato de Olaizola. E estou de certa forma, na medida em que vejo as costuras da sua boa vontade, na medida em que há uma espécie de nostalgia por antecipação (do que era antes: não só da terra mas da juventude destes senhores) que não dá uma visão desprendida do que é ter raízes num espaço e num passado (porra, às vezes é preciso ter sorte para que o genuíno, mesmo quando fabricado, irrompa). É o contrário das extraordinárias Raíces (1943) de Frida Khalo. E é paradoxal: se essa fabricação à la mode ficção/documental serve pouco o filme, são esses os momentos que nos esmurram. Os diálogos no interior como já referi (num filme que procura preservar a relação dos habitantes com o exterior que os “expulsa”) mas também essa sugestão absolutamente ficcional e que vem do “fogo”, da luz do sol que se põe, ainda radiante – numa altura em que todos se decidiram a ficar custe o que custar, e os cães, esses, já partiram. Isso não deixa que silencie o óbvio: a lentidão se tida como um mecanismo isolado soa a lição de cátedra e o ritmo é um filho pródigo do filme, não da intenção.

Foi um privilégio incrível ver a abertura da retrospectiva Chantal Akerman com a própria a pouco mais de um metro de mim a apresentar D’Est (1993). Pareço uma adolescente a falar do Robert Pattinson mas há uma razão que extravasa a minha admiração. É que a realizadora belga, visivelmente constipada e abatida, falou do facto do seu documentário não ter lá nada, não ter planos informativos. Não há lá nada, só há pessoas e só há olhares. Relembro o texto que escrevi aqui há dias a propósito da antevisão do festival. Sobre D’Est (não tinha revisto o filme na altura) escrevia que as pessoas e os lugares “parecem esperar pacientemente um futuro que os envolva”. Ora, sobre isto, digo, é mandar para o caixote do lixo. Não é nada assim. Depois de rever aquele que considero o melhor filme de Chantal vejo que a espera é, quando muito, um tema subliminar do documentário. Costuma dizer-se que há quatro estatutos que colocam Chantal fora da espinha dorsal de uma noção de mainstream cultural (ou como ela lhe chamaria, do poder do dinheiro e do phallus). São eles: o ser mulher, o ser belga, o ser judia e ainda cineasta experimental. Estas quatro condições colocam-na numa margem (identificável mas que não deixa de ser uma margem) a partir do qual podemos receber esta sua obra rodada na Ucrânia, Polónia e Alemanha de Leste. Não se trata de criar grelhas nem de fechar o filme no facto das filas de espera que Akerman filma em gares, nas ruas geladas à noite, em mercados, poderem remeter para essas outras filas históricas da Segunda Guerra Mundial (embora Chantal tenha despertado para essa ideia à medida que o filme ia sendo feito). O interessante, dizia, passa também por pensar a importância, a poeticidade e a beleza de D’Est como ligada à capacidade desse seu estatuto de outsider lhe ter permitido ver o leste a partir de um mecanismo — o travelling (literalizando-o como forma de viagem e sempre da direita para a esquerda, isto é, de leste para oeste) que constrói e destrói a todo o tempo a paisagem. Mas que sobretudo esvazia (não há lá nada, repito) para depois poder(mos) construir coisas de vário fabrico. Por exemplo, essa lateralidade do seu cinema (onde resta a questão de saber se é o spot ideal ou o mais seguro para a observação de Chantal) permite criar essa fronteira no espaço (outro dos seus temas) para a construção de um monumento político ao olhar dos povos. Esse olhar e devolução de olhar em circuito, que parece às vezes literalizar o museu imaginário e Malraux, possui esse alcance de criar um espaço de contemplação in locus. E depois essa contemplação é também deixada à fruição do tempo (como se lêssemos a Avenida Nevsky de Gógol e substituíssemos a pseudo-animação realista da sua voz por uma frieza que é o animo próprio de Akerman). Tudo isto e mais alguma coisa em D’Est, obra bela, importante e poética, não necessariamente por esta ordem, filmada em 16mm e que tivemos a oportunidade de ver em 35. Um privilégio. Só mais uma coisa: a dada altura há um plano lateral de um palco e de uma pista de dança. E claro cantam e dança-se. As influências podem surgir de onde menos se espera. Será de mim ou é possível antever o Miguel Gomes aqui?

E ao terceiro dia do Doclisboa continuou-se a falar de raízes. Shilton Ha’Chok (The Law in These Parts, 2011) do israelita Ra'anan Alexandrowicz é um daqueles filmes que encaixa na perfeição nesse dilema que é fazer um filme importante. A intenção é explorar os mecanismos que deram origem a um ordenamento jurídico ex novo por parte de magistrados, conselheiros e legisladores israelitas que permitiram dar cobertura legal à ocupação da Faixa de Gaza e da Cisjordânia desde 1967. O cineasta com imagens de julgamentos, recursos, leis, tudo found footage, tinha esse problema específico de dar-lhe uma forma cinematográfica. O que pensou não foi mau. Foi colocar os magistrados que ia entrevistar num estúdio com algumas dessas imagens a passar em fundo. E depois fazer uso de um paralelo entre criar um ordenamento e a possibilidade que o realizador tem de criar realidades através das imagens, tudo isto bem à vista pelo uso do dispositivo meta-documental. Que dizer? As pessoas baterem palmas e com razão uma vez que se trata de mostrar a lei como ficção para cobrir atrocidades e porque ninguém desinteressado e com poder (isso é impossível?) fez ainda alguma coisa contra isso. Contudo, há um problema em tentar pensar uma forma para um conteúdo ou vice-versa. As suas coisas casam-se mal em Shilton precisamente porque as imagens que o cineasta usa não comunicam (vão muito para além) do programa pesado de filmar como redenção do realizador: o julgamento dos juízes. A cadeira, o modo de entrevista indiciam isto, um interrogatório, com a voz baixa e controlada do realizador na penumbra. Mas há um outro julgamento a decorrer muito mais subterrâneo: o das acções daqueles homens (que acreditam nessa possibilidade de criar uma lei para aplicar a um outro que não nós) perante as imagens, os documentos produzidos por esse esquema imaginário a que deram origem. E desse julgamento, por muito que nos custe, todos eles saem ilibados... Pode ser que surja o tal “julgamento da História” (o tal que Ra'anan não sabe do que se trata) e repare isso. Para já fica o moto claro no final do filme: “o tema deste documentário aguarda julgamento”. É verdade e por isso paremos as filosofias.

Até porque a história da sessão seguinte sobre cinema experimental começa com um rapaz dos seus 12 anos sentado na fila em frente à minha a explicar à mãe o que é a expressão “pioneer in action sequence”. Dizia ele: “é  uma cena de acção nunca vista como no The Bourne Ultimatum (Ultimato, 2007) ou no North by Northwest (Intriga Internacional, 1959)”. Perdão? Como disse? Enquanto isso, Augusto Seabra apresentava a sessão e falava dos modos de olhar e dos festivais como espaços para pensar o cinema. Ora, nem mais. Sobre Free Radicals: a History of Experimental Film (2011) há um lado meio poético que tem a ver com o free do título. Este parece indiciar que Pip Chodorov, pelo facto de ser ele um cineasta experimental (também porque o seu pai Stephan Chodorov, um produtor de televisão, fomentou desde que ele era criança a convivência com pessoas como Jonas Mekas ou Stan Brakhage), vê quase todas as figuras do cinema experimental ora como amigos, ora como ídolos. Daí essa noção romântica de liberdade, que até está presente no filme por uma certa naiveté, um certo gosto mainstream (provocamos) que trai um pouco a exegese necessária à fabricação de um história. E por isso Free Radicals é menos uma história do experimentalismo no cinema e mais uma homenagem sobretudo aos cineastas que depois estiveram juntos na edificação dessa “cinemateca” norte-americana do cinema independente e avant-garde que é o Anthology Film Archives. Nenhum mal nisso. Ficamos sempre com histórias inestimáveis para contar: o momento triste em que Ken Jacobs confessa que no passado, sem dinheiro, faminto, tirou uma vez costeletas de um caixote do lixo e as comeu; a fórmula de Hans Richter: “I give chance a chance”; o último filme de Stan Brakhage feito na cama quando estava prestes a ser levado pelo cancro; os filmes caseiros da família do próprio Pip mijados pelo cão, dando-lhes automaticamente um look experimental, etc etc. Fica por contar toda a História mas há histórias suficientemente esclarecedoras que certamente cumprirão a sua função: pôr o miúdo de 12 anos a pensar nesse lado B da história do cinema.

(Nota trágico-cómica: em homenagem às pessoas acometidas de um súbito laxismo intelectual eis a resenha de tom extremamente sarcástico -  D’Est e Nuukuria Neishon um thumbs up. Free Radicals e Shilton Ha’Chok um thumbs down. E um middle thumb (o que é isso?) ao Fogo.)

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