terça-feira, 8 de janeiro de 2013

El espíritu de la colmena (1973) de Víctor Erice

¿Para que sirve el corazón?

Não serve para respirar, isso sabe-se. Mas a resposta correcta não as sabiam as meninas, coitadas. E era caso para tanto pois não é na escola, nem na anatomia, que se devia procurar a resposta. A visão mais clara deu-a uma das mais extraordinárias obras do cinema espanhol, ponto, feita dois anos antes do fim do regime franquista. Na altura, havia comédias, exercícios de ligeireza pró-regime mas só havia uma maneira de se ser “sério”: evitar a política por via do onirismo, da “estética franquista”, na qual nada parecia fazer mossa, antes tudo uma diversão de um bando de “gente” lunática e inóqua.

E Erice, que sempre quis fazer obras contra o tempo (mas também contra uma noção fechada de nostalgia de um mundo livre), foi filmar a sua primeira longa-metragem à aldeia de Hoyuelos na zona de Burgos. Algumas casas em ruínas, as crianças a brincar por aí desamparadas, mas eis que chega o cinema itinerante que ums senhora anuncia em voz mecânica. O preço do bilhete é de uma peseta para os adultos. Mas são sobretudo as crianças que lá vão e que ficam estarrecidas com essa audácia prometeica do homem: criar vida humana. O filme, pois está claro, é o Frankenstein (Frankenstein, 1931) de James Whale e a mais pequena das duas irmãs, Ana, seis anos, pergunta à irmã mais velha, Isabel, porque é que no filme o monstro mata a menina e porque é que o matam a seguir. Ana tem sono e não quer responder. “Não sabes, és uma mentirosa”, desafia-a Ana. E a irmã diz-lhe que ninguém morreu que no cinema tudo é um truque.

Em El espiritú de la colmena (O Espírito da Colmeia, 1973) este “truque” é o de trazer uma família para uma aldeia em pós-guerra civil espanhola e, pelo filtro do drama individual, trabalhar questões como a solidão, a diferença ou a alienação. São dois movimentos contrários neste conjunto de quatro: Fernando, o pai, veio para estudar as abelhas e afasta-se, isola-se, da mulher, Teresa, que escreve cartas a um ex-amante em França; por sua vez, há um movimento de aproximação de Ana e Isabel, as filhas, face à realidade, como processo de crescimento e crença no universo.

No final do filme, Erice não permite a reinvocação do espírito de Frankenstein. Ana abre a janela, fecha os olhos e diz “soy ana, soy ana”. Mas nada. O “amigo” não aparece e o filme termina. Esse fim é também o fechamento de um ciclo de infância que o espanhol juntamente com o argumentista Ángel Fernández Santos convocam para o filme. Das suas memórias nos anos 40 (1940 é ano em que o filme se passa e no qual nasceu Erice) ficam-nos as aulas de anatomia, as tabuadas cantadas em voz alta, mas também o saltar das fogueiras, o apanhar cogumelos pelo bosque ou o pintar os lábios com o sangue de uma ferida que nos fez o gato.

O espaço onírico que o diálogo com a obra de James Whale permite, e que as experiências da infância expandem, ganham a sua dimensão máxima na forma como Erice constrói todo o lado alegórico do seu filme em torno daquilo que Maurice Maeterlinck chamou “L’esprit de la ruche”. O “espírito da colmeia” foi a forma como o ensaísta e poeta belga conseguiu, numa das mais completas obras sobre as abelhas intitulada La Vie des Abeilles (de 1901), extrair-se a uma dimensão antropomorfista no estudo desses insectos. Este princípio enigmático, paradoxal, de conteúdo indefinível é aquilo que norteia a vida e organização das colmeias e nelas, das abelhas. E que espírito é este aplicado às pessoas? A estas pessoas? A este filme? Longe de mim, tentar uma resposta. E há-as para todos os gostos: que a Espanha franquista dispunha das pessoas num sistema de trabalho e obediência como numa colmeia; ou que se esboça um certo antagonismo que opunha o espírito das abelhas (união) ao dos homens (separação). O mais certo é que o motivo da colmeia está presente visualmente nos painéis hexagonais dos vidros da casa (como favos), no dourado-mel e castanhos da cinematografia de Luís Cuadrado (que ficou cego uns anos depois de trabalhar em El espíritu de la colmena) ou na desorientação do mosaico de alguns planos sobretudo na casa da família, a reclamar os establishing shots.

Tendo este “espírito”, o que quer que ele seja, como norte, Victor Erice filma uma falsa segurança, um ritmo lento, uma causalidade por vezes inexplicável, o isolamento das suas personagens nos planos e na relação com o espaço (várias vezes os planos são abertos e picados entrando as pessoas neles, indo em direcção ao “infinito”: uma linha de fuga feita em casa ou pela linha do comboio) ou ainda a construção de um “terror humanista” (como em Whale, de resto) pelo sussurrar das crianças, pelos barulhos dos passos na madeira ou pela penumbra apenas atenuada através da luz de velas ou candeeiros.

E só depois de termos sido embalados pela inocência das crianças, pelos espaços de contemplação de um espaço rural íntimo, podemos fazer esse exercício de mudar de F. Isto é, de passar do espírito de Frankenstein ao espírito de Franco. E nesse movimento perceber que, por exemplo, quando Ana encontra um jovem ferido num armazém e lhe dá de comer maçã e pão com mel, mais do que “reviver” o célebre episódio de Frankenstein, está a passar-se a ideia do soldado de resistência anti-franquista como “falso monstro”. Ou a desagregação da família como símbolo da segregação na nação espanhola durante a guerra civil. Mas não queiramos ver demais.

Apetece-me antes ficar ainda com o “monstro que bafeja fumo” que é a locomotiva que leva as cartas da mãe e traz o soldado ferido. Com esse plano de entrada das crianças na escola ao som de flauta. Ou o momento em que Ana põe os olhos a D. José, o boneco da aula de anatomia. “D. José ya puede ver”, diz a professora.

Mas afinal ¿Para que sirve el corazón?

Serve para ver o que os olhos não veem. Por isso é que D. José, tendo já olhos, não conseguiu ver. Era um boneco, um puppet. Só nós é que vimos. E nunca deixamos de o fazer desde então.

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