quinta-feira, 20 de agosto de 2015

As Vinhas da Ira: Steinbeck vs. Ford


Fui ontem ver finalmente Taxi de Jafar Panahi (cujas flores, peixes e viagens sem bandeirada deixarei para breve) e de lá retiro o "realismo sórdido" para falar de John Ford. Sabemos como a palavra sórdido evolui (infelizmente com os nossos limites da tolerância) e que um filme como The Grapes of Wrath sendo socialmente explícito não é visualmente gráfico. Se no romance de Steinbeck há esse propósito revolucionário, de construção de uma "tag of shame" sobre culpados, o filme de Ford é muito mais sobre o pouco espaço que existe (no plano) entre os inocentes e a construção de um espaço de combate contra a injustiça, seja ela qual for. 

Esses propósitos parecem nuances mas produzem activamente espaços políticos de actuação emocional diferentes. No livro de quase 500 páginas, as diferentes peripécias dos Joad, a "banha que espirra na frigideira" em tantos locais diferentes ante a terrível sombra de não haver em breve nada para lá meter, as pessoas que se juntam e os membros da família que se "desmembram", o desmembrar do próprio caminhão, fazem do livro de Steinbeck um travelling lento de progressão para lugar nenhum seco, abrigado. Não por acaso Ford decidiu eliminar a melhor e final imagem do livro: a pietá de Rose of Sharon a dar de mamar o seu leite (o leite que não irá prolongar os Joad) num estábulo, a um homem de faces encovados prestes a morrer de fome. O filme de Ford elimina ainda essa progressão lenta e acelera o movimento (o filme tem 125 minutos) numa espécie de máquina abstracta que produz a fome e a injustiça social. Para Fonda, Carradine, Darwell, "o povo" é um estado abstracto que avança por espaços pouco distintos. Sobretudo para expor menos a circunstância "vermelha" da luta contra os mecanismos capitalistas e mecânicos da Grande Depressão e mais colocar em equação as vantagens e as desvantagens do eu (Fonda-Tom que começa e acaba só na estrada) por oposição ao nós da família, da Union, da comunidade. E a escolher um episódio religioso para terminar o filme Ford prefere rejeitar o lamento pessimista e divinatório do estábulo e filmar a transmutação do eu em todos: o discurso de Fonda em que este diz à mãe que ela o poderá ver em toda a parte (I'll be everywhere) em que existir uma injustiça. 

No final de contas talvez se possa dizer que o livro de Steinbeck se atrela mais ao contexto e Ford mais à mecânica abstracta da reparação heróica da injustiça. Isso faz com que hoje, mediante as diferentes ambições (um para agora, outro para sempre), se justifique que o livro tenha pontos que nos façam perceber o gap entre 1939 e 2015 e que o filme perdure como hino que almeje a eternidade da luta. 

Seja como for, tenho de ser justo aqui, a concretude neste caso é um ponto de coragem, a coragem de se ser esquecido para atingir o presente em cheio nos tomates.

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