terça-feira, 25 de agosto de 2015

Elogio dos amigos


Numa altura em que metade de vós está esparramada na areia com o sol apontado ao nariz e a outra metade se encontra desmaiada no sofá com a ventoinha a fazer coreografias sobre as gotinhas de suor das vossas testas, decidi escrever um elogio aos meus amigos. Não a todos, tenho poucos como convém, mas aqueles que o cinema me fez descobrir. Há três anos e uns pozinhos, uma pessoa que eu não conhecia de parte nenhuma, mandou-me um email a saber se queria fazer parte de um projecto que juntasse vários blogues de cinema e os reunisse num site. Site que até hoje tem o condão de ser chamado de blog. Não vou contar como tudo se passou até se chegar aquilo que é hoje o À pala de Walsh. Muito menos vou falar da qualidade (ou da falta dela) do site. O ataque de philia que me invade, tal qual homem possuído pelo espírito da Madonna em pleno karaoke, tem só o propósito de falar do Luís, do João e do Ricardo, que juntamente comigo, fundaram a coisa e entretanto se tornaram meus amigos. Estou-me bem borrifando para fundações; o que queria mesmo era dizer-vos que foi a escrita de cada um que me trouxe a sua amizade e que nela teve (tem) influência o seu estilo.

Costuma dizer-se que a boa crítica é aquela que é feita por pessoas que usam os filmes para escrever sobre si próprios, e dar ao leitor o modo como veem o mundo, as suas paranóias, obsessões, tiques... E como só vou para a praia depois de amanhã aproveitava para falar um pouco destas três pessoas através da sua escrita, correndo bem o risco de as embaraçar. 

Começo pelo Luís, único que aliás conhecia de amizades intermédias entre nós e de uma remota relação à universidade. O Luís é um gajo que pensa, respira, vê cinema como poucas pessoas que conheço. Investigador e curioso incansável na sua vontade de expandir o seu conhecimento cinéfilo, pode falar de cinema desde os primeiros minutos do dia (neste caso, da tarde) até ao deitar. Pelo meio, três filmes diários não serão demais para a sua retina, sem nunca perder o discernimento. Já várias vezes perdi a noção do tempo a falar com o Luís. Ao telefone, presencialmente, seja como for, parece que existe entre nós esta espécie de conversa interminável, que ora assume o tom do ping pong, ora é um jogo de pares a caminho sabe-se lá do quê. De todos talvez aquele que tem a escrita mais rica em referências, densa até por vezes, e nele se nota a erudição intelectual capaz de defender com argumentos de ferro e até à morte os seus amores (tantos, Shyamalan é o nome que agora me vem à cabeça) ou de atacar corajosamente as suas desconfianças (lembro-me das séries de televisão, ou da falta de pachorra para o teatro). A minha relação com o Luís mostra bem como a crítica não é bem só sobre os filmes. E digo-vos isto porque eu sei que por definição há muitas probabilidades de nos encontrarmos frequentemente em espectros opostos (eu às vezes demasiado liberal, ele às vezes demasiado conservador) e ainda assim ansiar pelo que o outro pode ter a dizer, como é que vai defender a sua dama.  

No espectro oposto ao rigor do Luís está o João. E não quero com isto dizer que o João não é rigoroso, ele é-o, mas mais formal, do que mentalmente. O João é o menos nerd dos quatro, sobretudo porque penso ser aquele que melhor tem noção da big picture. Movendo-se muito frequentemente nas áreas da música (Fontória a semana passada, alguém?) ou da literatura, a escrita do João procura preservar uma coolness que seja um eficaz ponto de ligação entre quem escreve e o leitor. Neste sentido, o homem da big picture (foi dele a ideia do site, como já devem ter adivinhado) tem um estilo ameno onde frequentemente entramos sem dificuldade e que tem como dois dos grandes trunfos o humor witty e a honestidade intelectual: não viu, não sabe, não quer saber, escreve isso mesmo. Às vezes andamos às turras por meninas bonitas (Adele) e amores e desamores (no cinema, no cinema) mas partilhamos tantos outros filmes, piadas, copos. Não há maneira de estar tenso com o João. Fico sempre com a sensação que pode vir a eternidade quando leio ou estou com o João, e que tudo o que mais chegar, lá estaremos nós para o resolver, discutir, caricaturar.

Finalmente, o Benjamin. O Ricardo é o mais novo dos quatro e quiçá o mais talentoso. Não falta quem por aí lhe chame o novo João César. Monteiro, não das Neves, apesar de ambos estarem ligados aos números. O Ricardo tem o rigor e a paixão do Luís, a descontracção e a lucidez social do João e mais. Há na escrita do Ricardo um verdadeiro talento literário para o detalhe, às vezes o fulgurante detalhe visual convertido em detalhe de escrita. E muitas vezes sai de jacto. Mas o que surpreende mais nem é o olhar de crítico criador ou criador crítico, é a limpidez de tudo isto. É o avanço velocíssimo do conhecimento do cinema, a organização do tempo para mil e uma tarefas (tem mais textos que quase todos nós juntos), a inesgotável capacidade de organização de informação, a falta de stress ou dificuldade. O gozo genuíno de fazer aquilo que se faz. E isso é do domínio da arte, transcende o trabalho. Difícil apanhar o Ricardo triste. Ou então também acrescenta aos seus talentos, o de actor. Carreira muito promissora é o que se avizinha para o wonder kid que, com a mesma ligeireza, ora fala de lagostas ora encontra premissas geniais em filmes menos geniais. É tudo tão fácil para ti, não é Ricardo?

Entre nós temos esta piada privada que é sobre textos (dentro e fora do site) que apelam ao sentimento, ou em rigor, os textos-molha-cueca. Esta foi a minha tentativa de humeceder os vossos slips para lá das contingências dos 35 graus. Mas mais do que molhar o que quer que seja, fui genérico. Eu sei. Mas o propósito não era fazer uma exegese do trabalho dos meus amigos, era elogiá-los. Era dar a ver que cada um é a peça inestimável deste meu puzzle pessoal de delicadas amizades que entram e saem do cinema, como memória e como quotidiano, todos os dias. Queria mostrar-lhes que os textos que escrevem já são adendas às suas palavras, gestos, atitudes. Que quase já me basta lê-los quando deles sinto a falta. Mas prefiro ter os textos e as pessoas e compor com eles a certeza (ou a ilusão) que formamos um frágil ecossistema cinéfilo onde nada seria o que é sem a presença, o olhar de cada um. De todos.


Finito. Agora rumarei à Grécia por uns dias e deixo-vos em paz. σας δούμε σύντομα.

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