quarta-feira, 23 de setembro de 2015

ela é uma parva e ele é um cabrão


Não sei se é ousado ou apenas tolo pensar em Lars Von Trier a propósito de tanta pancada que levam as mulheres no cinema de Mikio Naruse. Não vou prosseguir nesta "dança à beira do abismo" da cinefilia, não se preocupem, até porque há pelo menos uma diferença que faz a relação cair (em parte) por terra. É que Trier bate nas suas personagens e levanta os olhos para nós na expectativa de ler no nosso olhar a reacção às suas maldades. Naruse não. Naruse, que acaba a sua obra prima Okigumo (Nuvens Flutuantes, 1955) com a frase The life of a flower is so brief, yet it must suffer much grief  (que está em vez da palavra "fim"), filma essa violência sem esperar nada. A vida é mesmo assim e as almofadinhas redentoras, que todos mais ou menos esperamos para reclinar os nossos anseios, são substituídas pelas nuvens. Nuvens que não explodem como desejávamos, como escreveu Daney sobre o filme, nuvens que são pesarosas e constantes por cima das cabeças de quem vive sob este mundo.

Queria ter tirado uma imagem do filme para colocar aqui mas não estava a conseguir. O plano mais desolado do mundo em que Hideko Takamine, já rejeitada pelo seu amor depois de regressar da Indochina (onde se tinha apaixonado por ele), pernoita num quarto sozinha, comendo timidamente um pedaço de pão enquanto chove desoladamente lá fora. E cá dentro também, pinga e Takamine vai buscar uma tina de metal para aparar os pingos da chuva. Nem vale a pena falar de lágrimas, nem sequer do som metálico que fica dolente na nossa cabeça durante o tempo do plano, do filme, da vida. Há ainda a chuva (é assim que se destroem as nuvens) que volta a surgir no final quando Takamine, finalmente consegue o que quer, ficar com o homem só para ela. Só que ela não subiu as escadas do seu amor, ela partiu para uma ilha com ele (já duas mulheres mortas tinha ele deixado para trás). Finalmente sós, os dois, como ela queria, ele pensou que morreriam numa montanha. Enganou-se. Choveu, mas era numa ilha que estavam.

Há poucas coisas mais tristes na história do cinema do que a morte de Yukiko Koda. Passamos o tempo toda a pensar: ela é uma parva e ele é um cabrão. Mas afinal a parva morre sem redenção (idiotas ou não, é assim que todos nos vamos) e ele chora, finalmente, verdadeiramente. Naruse faz as mulheres subir as escadas, chorar todas as gotas das nuvens cinzentas, para depois a isso se seguir o falso sorriso ou a nesga de sol. Não há tempo em toda esta circularidade para ter pena ou pesar, daqueles, daquilo, que Naruse põe nos planos.

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