segunda-feira, 21 de setembro de 2015

O vento e o inevitável



Não deixa de ser simbólico e revelador que um dos objectos que criámos para obter vento - a ventoinha - contenha no seu interior pás que giram ininterruptamente. Esse girar sem fim é bem sinal da condição humana se tivermos a aragem invisível que faz deslocar as coisas de um lado para o outro como uma manifestação terrena dos desígnios divinos. O encenador Tiago Rodrigues usou precisamente um monte de ventoinhas para dar em palco a presença (ou ausência) do vento na direcção de Ifigénia em Áulis de Eurípedes, primeira das tragédias que repõe por estes dias no teatro D. Maria II. Muitas vezes o cinema usou em fora de campo as ventoinhas para insuflar o mundo, seja ele o detalhe romântico expressionista do vento de Sjöström (ninguém o voltou a filmar daquela maneira), seja a aragem desoladora, ameaçadora (falava dela no mês passado a propósito de John Carpenter) ou as ideias da sua transiência (Sirk escreveu no vento, Fleming mostrou-nos o que o vento leva com ele) e liberdade deambulatória (ainda Kiarostami, Le Vent nous Emportera). Todos estes têm pressuposto o pressuposto do cinema que é simultaneamente o do vento: o movimento. O vento é o vento bailador de Primaveras como escrevia Sophia de Mello Breyner, insufla as paixões, mas é, também, como na tragédia de Eurípedes, o motor narrativo. O que faz avançar os barcos gregos a Tróia, o que faz perceber que entre o sacrifício da mulher de Menelau, Helena, e o sacrifício da filha de Agamemnon - que não por acaso, uma não se sabe se foi raptada se fugiu e a outra não se sabe se foi morta ou substituída por um veado no momento derradeiro - a única diferença é retórica. Essa diferença joga-se no espaço sem vento, espaço em que se dá a construção de um argumentário de sacrifício que permita hierarquizar estas duas mortes simbólicas.

Na peça de Eurípedes a falta de vento é símbolo do colapso da acção (a pane da máquina narrativa) que obriga a incitar-nos a agir novamente (os deuses, são como se diz, uma explicação às massas para o que acontece, de facto) e a colocar em andamento (circular, simbólico nas suas causas e efeitos) a ventoinha humana. Esta circularidade, que mostra que o vento nunca estará no mesmo sítio onde esteve mas que nunca parará de soprar, é a clareza de que para continuar a jogar o jogo interminável é preciso mexer as peças de lugar. Substituir umas pelas outras, trazer novos elementos à mesa de jogo. É a dimensão política da tragédia. É a percepção que ao sacrifício de Ifigénia, ao de Isaac, ou quase 2500 anos depois, ao dos próprios Gregos como despojos de uma democracia "antiquada", subjaz a mesma construção do discurso do inevitável. Custa muito mas assim tem de ser. E como refere um velho ditado judaico: Os ventos estão sempre ao lado dos que mandam.

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