sexta-feira, 31 de julho de 2015

As linhas e o tempo em Assault on Precint 13


Há todo um exército de paralelismos geniais que cercam o filme Assault on Precint 13 que vão de Romero a Rio Bravo. Talvez seja um pouco mais seguro trancar o pensamento nas linhas rectas, ou seja, aquém do momento do assalto propriamente dito. Aquela cena em que vemos as janelas da esquadra a serem destruídas, papeis pelo ar, o desenho das balas nas paredes e não vemos ninguém... (e pouco ouvimos... pois os maus usam silenciadores), essa cena, digo, parece quase cinema experimental com Carpenter a filmar o movimento invisível e mágico dos objectos a mexerem-se sozinhos. Só que essa "magia" é o tema de Carpenter, a ameaça silenciosa e invisível que sobre nós avança, como o nevoeiro, o silêncio da máscara de Mike Meyers ou o que está por trás do que se vê a olho nu em They Live. Essa ameaça invisível começa a ser desenhada nos planos abertos e de linhas direitas das estradas em que viajam, preparando-se, todos os que vão confluir para a esquadra (o pai e a filha, os delinquentes, o homem dos gelados, os prisioneiros na camioneta). Essa geometria do aberto serve como preparação da invasão, do fechado. 

Importante a questão da preparação. Os intertítulos do filme de Carpenter a mostrar-nos as horas inspiraram os nervos de uma série como 24, por exemplo.  Mas no filme o avanço temporal é menos um dado em si e mais uma preparação do "momento oportuno", do kairós para um duelo espacial. Já com Jack Bauer essa preparação temporal é objectiva, acelera-se, e a contagem dos minutos contém sempre a cada hora uma pequena ejaculação em seco: estamos no tempo do chronos e em particular  no tempo circular, das colheitas e das estações... de televisão. Passam as horas de um dia que conduz ao próximo e em que cada hora é a reprodução infinitesimal do conjunto das outras horas. É precisamente porque o tempo de Carpenter não é o da circularidade, nem o do avanço cronológico, que a morte da criança junto da camião de gelados surge menos da tensão do que do choque, do momento inesperado e oportuno para o que não é passível aos nossos olhos de oportunidade.  

(vou ver se uso Agosto para descansar sobre Carpenter e Cronenberg. Uns filmes para ver pela primeira vez e outros para essa coisa que faço muito pouco e devia fazer muito mais: rever. Vamos ver se não me perco pelo caminho.)

Cameron viu demasiados filmes do Romero


http://www.theguardian.com/uk-news/2015/jul/30/david-cameron-migrant-swarm-language-condemned


quinta-feira, 30 de julho de 2015

The tramp and the dictator


"He could hardly see another person without wanting to conquer them, to envelop them in the need to attend to him. Yet, on occasion, he could be the real fellow, happy to go on tour, thrilled by the crowd, so ready to be "Charlie" to greet the cry, "Look, there he is!" When great crowds of adoring fans came up to him he held them back a little just by acting out his surprise, his emotion, his being Charlie. The political figure in Charlie was born very early, for it was a natural response to huge attention: Are you looking at me? Think of all the stars who have been crushed by attention, and remember that Charlie exulted in it and was fueled by it, for he felt he deserved it. From such an early age he was like himself, emblematic - Chaplinesque. Which is not quite being himself, though it may be a hinge of modernism. I mean it as a measure of his greatness (and of his coldness) that when Adolph Hitler came along, Chaplin began to take on the dictator as a subject (or a challenger) because he was his most significant rival."

David Thompson in "The Whole Equation", p. 64

terça-feira, 28 de julho de 2015

American (wet) dream


S.O.B. (1981)- Blake Edwards

sexta-feira, 24 de julho de 2015


quinta-feira, 23 de julho de 2015

Six of a Kind

Ao embrenhar-me no cinema de WC Fields e na catalogação dos seus traços físicos, gestos obsessivos, objectos fetiche (do nariz à bengala, ao chapéu, à garrafa, ao tactear ou sentar-se em cima de algo afiado, há uma cartografia ou um desenho da pessoa e da comédia que dela advém como traços não separáveis) eis que chego a Six of a Kind de Leo McCarey. O nome é pesado na realização e isso talvez tenha ajudado ao "choque" de ver finalmente uma comédia com muita "graça". Pensei tratar-se de um filme de transição do humor físico ao humor mais cerebral, no qual WC Fields, que até só entra em cena perto dos 30 minutos (este tem uma hora), se sentisse como "peça a mais". Nada mais errado. Não só Six of a Kind precede a fama de Fields de obras como You're Telling Me!, The Back Dick, The Old Fashioned Way como muitos dos seus números e frases do filme de 1934 viriam a ser utilizados posteriormente. O melhor exemplo é a cena do snooker que viria a ser literalmente retomada em Follow the Boys, filme sobre o entretenimento dos soldados em plena 2ª Guerra Mundial, do qual aqui falei há uns dias. Esta capacidade de se mover os gags daqui para ali mostra a razão de ser deste choque. Como em muito poucos filmes de Fields (talvez My Little Chickadee com Mae West seja uma das excepções) aqui não é a acumulação de gags que suporta uma trama mais ou menos linear e neutra. McCarey inverte os termos: é no contexto da situação divertida- um casal que quer gozar uma segunda lua de mel e que se vê "vítima" da presença insistente de um casal que responde a um anúncio de jornal que a mulher havia colocado no sentido de dividirem despesas na viagem de carro para a Califórnia -, que os gags surgem. Fruto desta inversão é termos a sensação que até os momentos mais parvinhos (a dada altura o marido quer que o outro casal vá literalmente "dar banho ao cão" para poder ter duas horas a sós com a sua mulher) resultam e que afinal de contas o humor é sempre fortalecido quando tudo o que vemos no ecrã contribui para o riso. A queda ou o trejeito, apostas a um mundo imóvel, apenas torna o riso fugaz, um movimento sem substância, uma comédia sem drama. No filme de McCarey não: tudo se move, tudo se ri.

Não querem mais links? Então tomem lá mais links.

Antes que me digam "oh Carlos para lá de despejar links" aqui vão mais dois fresquinhos que espero arrumem o assunto da divulgação até ao final da próxima semana. O primeiro sobre o truque de magia do espanhol Carlos Vermut ao transformar o seu drama indie num thriller noir envolvendo prostituição e vómitos. É Magical Girl que estreia esta semana pela mão da Alambique. O segundo, um simpático convite da Sabrina Marques para participar num dossier sobre as fendas à censura do Código Hays na revista Wrong Wrong. Óptima ocasião para falar de fendas, muros, penetrações e das muralhas de Jericó entre Gable and Colbert. Boas leituras.  

quarta-feira, 22 de julho de 2015

BS Total


Aqui está a minha primeira contribuição para "Na Presença dos Palhaços", o terceiro dossier publicado no À pala de Walsh. Traduzi o tal texto de Emmanuel Burdeau sobre o Ben Stiller a que fiz referência há uns dias, aqui e aqui. Chama-se BS Total e vale a pena ler como um recente exercício do denominado "vulgar auteurism". E isto sabendo que o "vulgar" ofenderá sempre umas quantas cabeças.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Associação (quase) livre



No outro dia estava todo excitadinho que até ia deixar escapar a cena de Tropic Thunder que acho mais genial. Mas hoje quando acabei de ver Follow the Boys de A. Edward Sutherland, um filme organizado em sketches sobre o contributo dos artistas norte-americanos para a segunda guerra mundial, lembrei-me outra vez da dita cena. No filme de 44, que até tem o mágico Orson Welles a serrar ao meio a Marlene Dietrich, há esta lógica do entreter a todo o custo os soldados (ou melhor os “rapazes”) entre destacamentos, e a formulação de uma máquina de fazer sonhar a todo o tempo e em quaisquer circunstâncias. Na comédia de Ben Stiller, quando este é capturado no meio da selva asiática por traficantes de droga, estes reconhecem-no como sendo o actor que faz de Jack, uma personagem atrasada mental e coração de ouro, a fazer lembrar o Jack Jack com Robin Williams e o Forrest Gump. Se já tinha sido perspicaz a ideia de que ele não tinha ganho o óscar porque neste caso era deficiente total e Hollywood só premeia “if you don’t go fully retarded” (basta recuar uns meses apenas para a estatueta da Redmayne pelo seu “Stephen não totalmente deficiente Hawkins” e perceber como isto é um facto), mas dizia, se isso era bom, depois quando fazem a Stiller uma peruca de fios de casca de coco e o obrigam a fazer um teatrinho desse filme para as “tropas”, estamos num outro nível de absoluta genialidade. Outra vez “entertaining the boys” a qualquer preço, com o palhaço triste agrilhoado a ficar contente como profissão. E nessa cena, por sua vez, lembrei-me do “teatro de humilhação” a que estão submetidos os nossos amigos helénicos. Para não julgarem que isto é só livre associação, ou mesmo que o achem, chamo em minha defesa uma frase do Miguel Gomes, com o qual conversámos há uns dias (e que em breve lançaremos sob a forma de filme falado no À pala de Walsh): os filmes também devem permitir ao espectador delírios. Este é o meu que coloca em raccord a cara de Tsipras e o nosso amigo Jack, aqui já só meio atrasado mental, que na selva representa a sua fraqueza, a sua humilhação.

terça-feira, 14 de julho de 2015

O cinquentão Ben Stiller


Ando há uns dias de volta de um texto de Emmanuel Burdeau, nome forte dos Cahiers entre 2003 e 2009, sobre o Ben Stiller. O texto faz parte de um livro deste ano chamado Comédie américaine, années 2000 e tenta recuperar ao estilo da célebre revista, uma série de gente como Jim Carrey, Will Ferrell, Judd Apatow ou mesmo Louis C.K. para o panteão da gente séria que faz comédia. Isso fez-me ir ver pela primeira vez filmes como Zoolander ou Tropic Thunder, que, muito sinceramente, envidei sérios esforços até hoje para evitar. Quando não pude mais esconder-me dos lábios de peixe do top model Derek Zoolander ou das tatuagens do actor que passa de atrasado mental para veterano que perde as mãozinhas na guerra do Vietname, não pude deixar de me surpreender pela continuidade formal da coisa. Não só, como diz Burdeau, a reflexão sobre o papel da imagem e da tecnologia (da televisão por cabo, ao cinema das estrelas, ao digital) mas sobretudo uma atenção fabulosa ao verniz do edifício de que o showbiz depende. O desejo final do modelo para fundar o Derek Zoolander Center For Children Who Can't Read Good And Wanna Learn To Do Other Stuff Good Too ou o Tom Cruise gordo a distribuir caralhadas em modo irmãos Weinstein são apenas dois exemplos desse olhar de dentro que corrói. O que suporta essa roda satírica é algo bem mais conservador: o receio do que muda, a valorização do passado. Seja na pele do velho ainda jeitoso que "resiste" à formatação pela imagem para matar o líder da Malásia, seja do actor que tem medo que nunca vir a ganhar um Óscar, seja o olhar analógico que resiste à higiene digital, que impõe a aventura da captura das imagens à administração económica que gera a transição da vida, da Life

 Fica assim resolvido o mistério dos adoradores de Ben Stiller. Não é o elogio da parvoíce mas o talento para a fabricação de uma falsa parvoíce. Porque filmes como Zoolander ou Tropic Thunder são tudo menos inócuos. Ou não fossem estes a obra de um quase cinquentão.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

1001 noites


quarta-feira, 8 de julho de 2015

Troika

"A child may ask, “What is the world’s story about?” And a grown man or woman may wonder, “What way will the world go? How does it end and, while we’re at it, what’s the story about?” I believe that there is one story in the world, and only one, that has frightened and inspired us, so that we live in a Pearl White serial of continuing thought and wonder. Humans are caught—in their lives, in their thoughts, in their hungers and ambitions, in their avarice and cruelty, and in their kindness and generosity too—in a net of good and evil. I think this is the only story we have and that it occurs on all levels of feeling and intelligence. Virtue and vice were warp and woof of our first consciousness, and they will be the fabric of our last, and this despite any changes we may impose on field and river and mountain, on economy and manners. There is no other story. A man, after he has brushed off the dust and chips of his life, will have left only the hard, clean questions: Was it good or was it evil? Have I done well—or ill?

Herodotus, in the Persian War, tells a story of how Croesus, the richest and most-favored king of his time, asked Solon the Athenian a leading question. He would not have asked it if he had not been worried about the answer. “Who,” he asked, “is the luckiest person in the world?” He must have been eaten with doubt and hungry for reassurance. Solon told him of three lucky people in old times. And Croesus more than likely did not listen, so anxious was he about himself. And when Solon did not mention him, Croesus was forced to say, “Do you not consider me lucky?” Solon did not hesitate in his answer. “How can I tell?” he said. “You aren’t dead yet.” And this answer must have haunted Croesus dismally as his luck disappeared, and his wealth and his kingdom. And as he was being burned on a tall fire, he may have thought of it and perhaps wished he had not asked or not been answered.

And in our time, when a man dies—if he has had wealth and influence and power and all the vestments that arouse envy, and after the living take stock of the dead man’s property and his eminence and works and monuments—the question is still there: Was his life good or was it evil? —which is another way of putting Croesus’s question. Envies are gone, and the measuring stick is: “Was he loved or was he hated? Is his death felt as a loss or does a kind of joy come of it?” I remember clearly the deaths of three men. One was the richest man of the century, who, having clawed his way to wealth through the souls and bodies of men, spent many years trying to buy back the love he had forfeited and by that process performed great service to the world and, perhaps, had much more than balanced the evils of his rise. I was on a ship when he died. The news was posted on the bulletin board, and nearly everyone received the news with pleasure. Several said, “Thank God that son of a bitch is dead.”

Then there was a man, smart as Satan, who, lacking some perception of human dignity and knowing all too well every aspect of human weakness and wickedness, used his special knowledge to warp men, to buy men, to bribe and threaten and seduce until he found himself in a position of great power. He clothed his motives in the names of virtue, and I have wondered whether he ever knew that no gift will ever buy back a man’s love when you have removed his self-love. A bribed man can only hate his briber. When this man died the nation rang with praise and, just beneath, with gladness that he was dead.

There was a third man, who perhaps made many errors in performance but whose effective life was devoted to making men brave and dignified and good in a time when they were poor and frightened and when ugly forces were loose in the world to utilize their fears. This man was hated by the few. When he died the people burst into tears in the streets and their minds wailed, “What can we do now? How can we go on without him?”

John Steinbeck - (East of Eden)

terça-feira, 7 de julho de 2015

segunda-feira, 6 de julho de 2015

domingo, 5 de julho de 2015

Não, não, não, não.

sábado, 4 de julho de 2015

Mad Max




Quando o louco Max, que aqui o é pouco, e Furiosa, regressam à casa de partida não podemos deixar de sorrir ao perceber que George Miller está profundamente consciente de que a sua saga tem hoje espaço apenas na rota circular de uma montanha russa. Depois podem acrescentar-se pensamentos sobre a busca constante de si próprio, ou até da felicidade como caminho e não como meta, mas sem esse disfarce o que há por aqui é o elogio da cinética, onde o sangue, a luta, a acrobacia são apenas mais elementos de uma orgiazinha que se pensa a si própria muito selvagem. Nesta ideia de um cinema convertido em atracção de feira popular, com freaks e modelos ao som dos bandoleiros do heavy metal, há a tentação de pensar que o espírito barroco e pós-apocalítico da série se encontra em lifting, em actualização. Contudo, se bem estou lembrado, a bizarria do mundo já depois do mundo de Mad Max é que ela se dava a ver num espelho mais ou menos sereno para o qual se olhava e onde se via a diferença daquele que olha. A montagem "Furiosa" de Fury Road só mima o que já lá está, em que a "redenção", os espaços "verdes" da esperança, o "amor" são tudo apenas palavras lançadas para o abismo da velocidade e do avanço. Desta forma estamos sempre na ausência de diferença entre o "pós" e o "apocalíptico", resultando que as "wacky races" metálicas, os sentidos do desértico e do árido, se desvanecem, tornando-se este em mais um filme anónimo de acção. Tão concreto e superficial deseja ser que só a abstracção alcança. Entre o início e o fim, de facto, há só tempo que passa, sem marca, sem mácula. Sem avanço. 

Sobre a banda sonora, a história é outra. Genial, genial é o que vos digo.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

quinta-feira, 2 de julho de 2015

O jogging e as erecções


Tenho de confessar-vos que tenho por estranho hábito o de manter regulares a inspiração e a expiração quando vou na rua a mais de 3 km por hora. Eu chamo a isto corrida embora desconfie bem que haja opiniões contrárias. Ia eu portanto ontem a subir e a descer costelas, ordenadamente, pela estrada da luz abaixo quando ouço na rádio as primeiras palavras inflamadas durante a apresentação aos sócios daquele outro treinador de quem já não se pode dizer o nome e que se chama Jorge Jesus. O tom assertivo de quem tinha acabado de chegar às bodas de Canã (alguém me diz se esta palavra sofreu alterações com o novo acordo ortográfico? Estou muito curioso em relação a isto.) fizeram-me desordenar a respiração, meter uma abaixo para os 2 km por hora e esboçar um ligeiro sorriso que coincidiu, pelo que me lembro, com uma espécie de pequeno arroto e uma ainda menor erecção (mas na palavra erecção posso manter os dois cês, não é? Se puder escolher, prefiro, pois fá-la parecer maior).

Chegando a casa vejo as imagens de tal evento e confirmo a expressão matadora de Jorge Jesus, que, enquanto salvava verbos de serem assassinados pela sua gramática, prometia que a água ia mesmo transformar-se em vinho, e portanto, o Sporting Clube de Portugal ia mesmo passar a ser novamente um dos três grandes. Qual dos três? Isso agora não vem ao caso. Mas não há-se ser difícil completar a charada. Desta feita, perante tais promessas o próximo ano avizinha-se extremamente rico para a vossa aprendizagem sobre a vida em geral (sobre a minha menos porque eu já sei o que isto vai dar). Mas para vocês apenas há duas hipóteses: 1) ou Jesus e São Virgulino inauguram mesmo uma nova fase no clube de Alvalade, culminando com o triunfo na Liga dos Campeões, provando-nos assim que o crime compensa (nada que o eurogrupo não nos tenha já ensinado); 2) ou toda esta história de resgates, sms encabotados e rasteiras em pré-época terá um desfecho justo e cristão. Os maus serão castigados e cairão numa das sete sarjetas do inferno, momento no qual Bruno de Carvalho engordará mais um quilo, dirá que todo o sistema sub celestial se encontra em plena cabala contra o clube e porá mais um post no seu facebook denunciando, para quem quiser ver, o seu pé atolado em caca até à eternidade.

Em qualquer destas duas opções voltarei a utilizar o meu velho ipod para fazer jogging uma vez que este não apanha rádio.

Igrejas e Bordéis

"A igreja e o bordel chegaram ao mesmo tempo ao Oeste. E ambos teriam ficado horrorizados se soubessem que não passavam de diferentes facetas da mesma necessidade. Porque, na realidade, ambos pretendiam alcançar o mesmo fim: os cânticos, os ritos, a poesia da igreja ofereciam ao homem o esquecimento da sua tristeza; o bordel, esse, oferecia-lhe outros esquecimentos. As diversas seitas chegaram de cabeça levantada, cheias de suficiência,e seguras da sua missão. Desprezando as mais simples leis económicas, mandaram construir igrejas que ainda não acabaram de pagar. Combatiam o mal, é certo, mas também se combatiam umas às outras com um vigor diabólico. Em nome duma doutrina, não havia nenhuma que não condenasse as outras às chamas do Inferno. Só numa coisa estavam de acordo: todas se gabavam de Serem fiéis intérpretes das Escrituras que definiram anossa estética e as nossas relações com os outros humanos. Seria necessário um homem sagaz para descobrir onde residiam as diferenças entre as seitas, mas toda a gente podia ver o que elas tinham de comum. Todas ofereciam a música, talvez não a melhor, mas qualquer coisa que dela tinha a forma e o som. Todas traziam, também, a consciência ou talvez fosse preferível dizer que aguilhoavam as consciências adormecidas... Não eram puras, mas possuíam um potencial de pureza como uma camisa branca que estivesse suja. E todos os homens se podiam apoderar do melhor para o fazer germinar em si. Quando o Reverendo Billing foi preso, verificaram que era ladrão, adúltero, libertino e zoomaníaco, mas isso não alterava o facto de ele ter comunicado muitas coisas boas a um grande número de fiéis. Prenderam o Reverendo Billing, mas o que nunca prenderam foi o que ele tinha libertado. E pouco importa que ele tenha obedecido a intentos impuros. Os seus materiais eram bons e o que ele construiu ainda se conserva de pé. Apenas cito o caso de Billing como um exemplo extremo. Os pregadores honestos tinham energia e eram dinâmicos. Combatiam o mal e expulsavam Satã de todos os lugares onde se introduzira. Poder-se-á talvez dizer que cantavam a verdade e a beleza da mesma maneira que uma foca canta o Hino Nacional ao som das cornetas dum circo. É possível mas ainda sobravam beleza e verdade bastantes e o hino era reconhecível. Contudo, as seitas fizeram mais do que isso. Criaram as bases da vida mundana no vale do Salinas. O jantar no presbitério é avô do clube local e as sessões poéticas que se realizavam à terça feira na cave da sacristia apadrinharam o teatro.
 
Enquanto as igrejas, carregadas do suave odor da piedade, investiam como ajaezados e impetuosos cavalos de cervejaria em dia de festa, a sua parente pobre entrava com pezinhos de lã, toda curvada e velada, para evangelizar os corpos. 

Talvez já tenham visto palácios de vício e de deboche no Far West truncado e artificial dos filmes; alguns até, podem ter existido. Mas não havia nenhum assim no vale do Salinas. Os bordéis eram calmos, ordenados e discretos. E, na verdade, se depois de terem escutado os gritos de êxtase dos fiéis, pontuados pelos acordes dos harmónios, ouvissem os murmúrios que saíam duma casa de prostituição, era natural que confundissem as identidades dos dois ministérios. O bordel era tolerado, mas não reconhecido."

John Steinbeck (A Leste do Paraíso)

quarta-feira, 1 de julho de 2015

O sotaque dos padres irlandeses embebeda



Calvary é um bom filme para explicar como o mecanismo do overwriting pode ser uma qualidade. Diálogos de um nível besta-metafísico, com uma estranheza linchiana a tentar controlar o riso do bizarro. John Michael McDonagh ao mesmo tempo que quer recriar o sacrifício crístico do padre James, coloca o magnífico Brendan Gleeson entre 12 lunáticos discípulos, cada um deles a muito bem poder matar um padre ao fim-de-semana. O filme tem uma dessas premissas genuinamente loucas e improváveis: um pecador confessa-se ao padre dizendo-lhe que sabe qual o sabor do sémen, que foi abusado repetidamente em criança por um seu colega eclesiástico e que por isso mesmo, no próximo domingo, vai matar o seu confessor, culpando-o pelos pecados do outro. A partir desta insanidade temos uma semana de calvário em que Brendan se vai preparando para a execução. O whowilldunit é nosso pois o padre sabe quem é o culpado. Mas o mais incrível em Calvary é que esta premissa doida, à primeira vista, comporta o "pecado" de ser demasiado subserviente à alegoria espiritual e religiosa que se concluirá no domingo seguinte. E até sabemos o local, na praia. Mas se nos pusermos a pensar um bocadinho, esta motivação vaga, displicente, serve apenas para desinvestir no thriller e apostar tudo na redenção. Qualquer um podia ter morto o padre James. Qualquer um podia não tê-lo feito. Tal é indiferente ante a forma como McDonagh joga o "erro" da escrita como trunfo. Desta forma, as cenas, verdadeiras set pieces de actuação e escrita (a cidade é pequena e o orçamento ainda menor, põe-no como evidência) podem muito bem deixar-se ir, resvalar ao ridículo, voltar à crise de fé e deixar que no final o espectador se sinta tão pecaminoso como qualquer das personagens. E sem saber bem porquê. Ou melhor, o único crime foi ter gostado de cinema e ter achado o sotaque irlandês algo que se bebe tranquilamente ao fim-de-semana em direcção à anestesia etílica.