quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Resolução ano novo

Objectivo para 2016: escrever em todos os hojes a primeira frase com que Dostoiévski abriu a carreira literária.

Ontem eu estava feliz, desmesuradamente feliz, infinitamente feliz!
(In Gente Pobre, 1846)

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Bandido Velho


Sobre a agonia da comunicação social

Fale-se de fundações, mecenato e crowdfunding para salvar a comunicação social, está tudo muito bem. Mas por favor não me venham com a questão dos suportes. Aliás, a solução corrente não tem apenas o digital como alvo. Ela tem vindo, grosso modo, a tratar o jornalismo como trata a arte: os "inúteis" têm de ser subsidiados. Ora, apoio a solução, é uma questão de sobrevivência. Mas há que ter olho alerta para este "empurrão" da comunicação social para o campo da arte no que toca aos seus modelos de financiamento. É um bem comum? Claro que é. Aliás, nunca deixou de o ser. Esse é mesmo o problema. Estas soluções têm o condão de vermos recuar perante a lógica económica a fronteira de um pensamento crítico. Antes a arte era ineficaz, sim, percebe-se. Mas agora coloca-se o problema da ineficácia do jornalismo. Ineficaz? Para quem? Para quem detém a empresa que sabe que se deve escrever o que lhe dá dinheiro ou nada... E a isenção, o código deontológico e a dúvida necessária à investigação? Ineficazes pois. O dilema do jornalismo mostra como recua para o território da ineficácia económica o pensamento crítico, qualquer que ele seja. Estes modelos de gestão — num processo crescente de matematização e economicização integral do mundo e de todas as áreas do viver — fazem recuar perigosamente todos os valores críticos e de discernimento para a esfera da ineficácia. Cabe então ao milionário, máximo jogador do sistema da eficácia, abrir pontualmente os cordões à bolsa, deixando existir o que é realmente humano ali no "parquinho-fundação" que ele criou, para que todos o vejam como o santo e benemérito do seu tempo.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

A lei do mais forte


Não sei qual foi o momento em que a má consciência deixada pela merda dos racismos históricos devorou o tema da diferença. De tal forma que eu, herdeiro dessa pedra no sapato, desse peso na consciência (sou como todos, não me quero sentir excluído), não posso deixar de sentir um "mas" a dar-me com um barrote nas costas quando penso em começar uma frase com a expressão "As mulheres...". De facto assim é.

Mas... as mulheres possuem um olhar de medusa. Já pensei nisto muitas vezes, no autocarro, em casa, numa festa de anos, num filme... Por exemplo, Brooklyn, anos 50. Estão a ver, não é? Há uma Rose, emigrante irlandesa, que entra na sala de baile e a música soa a bandolins, violinos e vozes cheias de melancolia. Toda gente pensa na sua casa naquele momento. Não naquele caixote do lixo de estátuas e oportunidades de trabalho mas nas praias desertas da costa irlandesa e no whiskey meio quente de Dublin ao anoitecer. Rosa olha em volta e descobre o seu alvo: é um italiano que tem um defeito de fala e quer casar assim que puder. Tanto melhor. Aponta o olhar de medusa e fica à espera, pacientemente, por um deslize, um momento em que o italiano baixe a guarda. Minutos depois ele poderá pegar no copo da cerveja e olhar para o lado, distraído, na sua direcção. Ou pode terminar de observar o tecto para respirar daquela gente toda. Nesse momento em que a presa está nua e a balir num canto já ferida (embora ainda não o saiba), Rose espeta-lhe o olhar de medusa e transforma-o em pedra. Quer dizer, numa pedra de sedução em que ele fica ali à sua disposição, para o que ela quiser no resto daquela noite. O olhar de Rose, como o olhar das mulheres, é esse espigão que substitui o soco, que arrasta na lama o pobre condenado deixando as suas costas em carne viva. O amor é feito desses lanhos nas costas.

O olhar das mulheres petrifica assim os homens (e as mulheres também; que eu não arrisco). A festa pode acabar já ali. Rose e o seu par de olhos azuis-pedra levara a melhor sobre o ridículo irlandês cheio de brilhante no cabelo. No fundo, é sempre a lei do mais forte.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Razões de cinza

(...)

amanhã entrevistarei o passado
e assaltar-me-á de novo a impressão

de que anos se recortaram na carne
e que é preciso procurar nos vincos da carne

razões de cinza, uma vontade que se estende
para lá do tempo e é um manto ou um tecto.

(...)

in "O Vidro" - Luís Quintais

Call for Papers: Interact #24 (Cinema, Crítica Digital e Ensaio Audiovisual)‏


Em 1979, numa conversa com Jean-Luc Godard e o director da Cinemateca Suíça Freddy Buache, Jean Mitry falava da série ainda por realizar Histoire(s) du cinéma como etapa desejável para a abertura da possibilidade de pôr o cinema a ensinar-se a si próprio. Realizador, programador e historiador pareciam concordar que a grande história do cinema ainda estava por fazer, uma que se escrevesse nas próprias imagens ou que fizesse das imagens inscrições de um olhar. Contra as impossibilidades burocrático-legais em torno dos direitos autorais, propunha-se citar um filme com a mesma naturalidade com que se cita um texto. Para quê resolver o problema de uma historiografia do cinema só com palavras, sem imagens e sem o movimento que o cinematógrafo lhes confere? Godard preocupava-se com a influência desregulada dos mass media na sociedade e pugnava por uma nova literacia que educasse o olhar a ler e descodificar a mensagem audiovisual.

Passados mais de 40 anos, o ensaio audiovisual aparece como estágio fundamental de uma denominada «audiovisualcy», aproveitando as facilidades do digital para a concretização do sonho daquele realizador, programador e historiador no final dos anos 70: pôr o cinema a ensinar cinema. O ensaio audiovisual aparece sob diversas formas, reunidas por professores, críticos e amadores do cinema. Justapõem-se gestos, cores, sonoridades, ambiências. Coleccionam-se pedaços de filmes nem sempre respeitando – ou mesmo propositadamente rompendo com – a linearidade cronológica e canónica dos manuais da história do cinema. Descobrem-se e sistematizam-se vizinhanças até então desconhecidas entre e dentro de universos autorais. Apesar da evolução significativa que se regista desde aquela conversa no ano de 1979, e parafraseando Benjamin, a pura crítica de citações ainda está por fazer. Por outro lado, falta ordenar e organizar – quer-se ordenar e organizar? – o caos de ensaios audiovisuais que se amontoa nos confins da Internet.

O novo número da Interact com o título Cinema, Crítica Digital e Ensaio Audiovisual propõe uma ordenação crítica e conceptual destas formas críticas emergentes. Este Call for Papers procura então propostas que respondam a todos estes temas, a saber:

1. Cinema digital
2. Crítica e/ou historiografia do cinema na era digital
3. Comunidades cinéfilas virtuais
4. Ensaios audiovisuais
5. Manipulação/edição na era digital

Para a submissão da proposta, o candidato tem de apresentar o título do ensaio com a indicação da secção a que pretende submeter, um abstract com até 2000 caracteres (com espaços) e a sua filiação universitária.

Lembramos que na Interact as peças devem ser mais curtas, mais ensaísticas, se não mesmo mais experimentais, e há todo o interesse em que seja dado bom uso às capacidades da própria World Wide Web, sendo de incentivar a existência de links, de imagens, de som, de interactividade. Se necessário, e para uma adequada adaptação à actual plataforma de publicação, poderá haver um diálogo entre autor e redacção sempre que a proposta o exija.

O envio das propostas deverá ser feito até 15 de Janeiro de 2015, para o e-mail dos coordenadores do número: Carlos Natálio (carlosnatalio1@gmail.com) e Luís Mendonça (luis.mendonca_@hotmail.com). Se aceites para publicação, as respectivas peças em versão publicável e definitiva deverão ser entregues entre os meses de Janeiro e Abril.

domingo, 27 de dezembro de 2015

sábado, 26 de dezembro de 2015


Tudo o que não é literatura aborrece-me –
queixava-se um checo muito conhecido.
As nossas vidas, aliás, deviam acontecer sempre no futuro,
onde, no fundo, sucedem todos os romances.
O nosso estilo teria a nitidez dos tratados científicos
e a força da descrição de uma batalha –
embora os críticos tentassem
transformar tudo isto num relatório criminal
ou no argumento para um filme de Domingo à tarde.
O Eduardo Prado Coelho era capaz de fazer isso. 


Mas é preciso fugir ao máximo dos museus de cera,
perseguir os funcionários públicos do senso comum,
evitar que as mulheres feias tenham filhos.
Aliás, é urgente matar toda a gente que tem fome.
Por isso, não me venhas com xaropes e bancos alimentares.
Não me trates as doenças.
Não levantes a mão.
Vem, vem apenas,
come as you are
- embora seja tarde.


Vem para esta sala de baile com portas cheias de musgo
e vozes molhadas em tabaco.
Vem passar uma noite nos seus cantos húmidos
onde coronéis e generais
levantavam as saias à história.


Já tirámos os cavalos,
já limpámos as trincheiras. 


Vem ralar na minha pele arrepiada
a cor pálida da lua
como se fosse a casca de um limão.


Vem sem falta –
o palco está vazio,
a sala cheia.
Com o passo lento das derrotas,
um macaco vestido de Shakespeare
conduzir-te-á até ao último acto. 


Golgona Anghel

Os melhores filmes de 2015

  1. As Mil e Uma Noites (2015) de Miguel Gomes
  2. Mia madre (Minha Mãe, 2015) de Nanni Moretti
  3. Adieu au langage (Adeus à Linguagem, 2014) de Jean-Luc Godard
  4. Inherent Vice (Vício Intrínseco, 2014) de Paul Thomas Anderson
  5. Kaguyahime no monogatari (O Conto da Princesa Kaguyahime, 2013) de Isao Takahata
  6. João Bénard da Costa: Outros Amarão As Coisas Que Eu Amei (2014) de Manuel Mozos
  7. P’tit Quinquin (O Pequeno Quinquin, 2014) de Bruno Dumont
  8. Timbuktu (2014) de Abderrahmane Sissako
  9. The Visit (A Visita, 2015) de M. Night Shyamalan
  10. Furious Seven (Velocidade Furiosa 7, 2015) de James Wan

O meu texto de justificação, assim como outros tops, aqui.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

O Nátáu é bacálhaú


Raios, é Natal. Na horizonte da minha lembrança já há couves e bacalhau — eu sou assim pequenino, sem interesses de monta além do comer. Mas também me ocupo de outras ninharias. Não hás-de mais fazer aquilo em 2016, trabalha mais, vê menos filmes, dá um jeito à tua vida, rapaz. Prometo que o ano que vem será diferente. Está prometido. Mas enquanto não chega o novo ano não páro de pensar em blockbusters. Creio que estou doente e preciso de ajuda. Penso nos blockbusters que vi em 2015 e que até tinham suminho, não era só casca e aqueles grumos. Mission: Impossible - Rogue Nation, Furious 7, Inside Out, Jurassic World, Ant-Man. Caraças, mas não era suposto um gajo ficar velho e amargo e odiar até o filme que o nosso filho faz para nós com o telemóvel para o nosso aniversário? Mas não. Aqueles dinossauros voadores estilo citação estúpida dos The Birds em modo parque de diversões e o dinossauro freak a abocanhar a bola em que seguiam os dois irmãos de Jurassic World são imagens que estão pregadas ao contraplacado do meu cérebro. Preciso de auxílio, já vos disse. Será caso para pensar que estou a caminho de meter os papéis para o rendimento máximo garantido (meaning, tornar-me militante daquele partido começado em P, terminado em D e com um S no meio)? E aquela formigona gigante, como se fosse um cãozinho de estimação, que fica debaixo da mesa depois da épica porrada entre o homem formiga e o outro careca? É certo que já vimos milhões de vezes aquela história do homem que quer vender a sua invenção pelo maior preço e que se está a cagar para a humanidade. Mas mesmo assim... Estarei a tornar-me num conservador badocha? Credo, os suores... Mas é que o homem formiga diz algumas graças e faz-me mesmo recuar ao Querida, eu Encolhi os Miúdos em que eles também eram piqueninos e andavam no meio dos insectos gigantes no jardim. Ou mesmo o Innerspace do Dante. O jogos das dimensões é um must pois o filme está sempre a fazer pouco de si próprio (a apequenar-se), ante o grande universo Marvel dos heróis-deuses na terra, a lutar a batalha do bem contra o mal. Por falar em mal, mal posso esperar pela consoada. Se calhar é mesmo uma fase e em breve sentirei ímpetos de investigar extensamente a vida de Álvaro Cunhal antes que tudo volte à normalidade. Se assim for acertem-me com um tiro de caçadeira antes de chegar 2016. Mas por favor, só depois do bacalhau. Feliz Natal para todos! 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015



animação-anima/animus


Não posso dizer que seja um grande seguidor de animação. Ela deixa-me em terra de ninguém, incapaz de apreciar, pela irremediável distância, quer a simplicidade de algumas histórias infantis, quer a complexidade futurista das milhentas personagens de milhentas patas e garras de dimensões paralelas. Talvez por isso só por insistência do word of mouth me tenha posto a ver Inside Out, o último filme da Pixar. Grande perda a que estava prestes a acontecer. A história de uma menina que muda de casa e cujas mudanças internas e externas têm de ser geridas pela torre de controlo comandada pela alegria e pela tristeza, com as tentativas de interferência do medo, da raiva e da aversão. Bonequinhos coloridos que Pete Docter, argumentista e realizador, coloca no centro da psyche da menina. É lugar comum falar da animação contemporânea como o espaço que tenta gerir um universo infantil, ao mesmo tempo que modela uma complexidade "adulta". Mas neste caso, está em causa toda uma imagética do funcionamento do humano. Ao mesmo tempo que não larga o "bonequinho" Freud, transporta-nos para um wonderland de Lewis Carrol (o amigo imaginário da menina, um elefante de algodão doce que chora caramelos é disso o elemento mais revelador) com o colorido imaginário Bubbles ou SimCity como background. Nesse mundo interior ainda há o estúdio cinematográfico dos sonhos, a masmorra do subconsciente, o espaço da desconstrução do pensamento abstracto e as ilhas da amizade, da honestidade, imaginação, etc. Convenhamos que são demasiadas boas ideias para passar ao lado de Inside Out. Título aliás que é triplamente sugestivo. Primeiro porque é um filme sobre dar a ver o comando interior do mundo exterior. Segundo porque ilustra essa tensão de que falei entre a animação que tem de ser infantil e adulta. E finalmente pois que se o filme passa o tempo todo a fazer o elogio da alegria como aquela que tem de impedir o "barco" de afundar, para depois revelar o fundamental papel da tristeza no crescimento do ser humano. Filme cómico por dentro e triste por fora, ou viceversa, dependendo de sermos mais azuis ou mais próximos de uma ideia de claridade. Como vi escrito algures, Inside Out  é um filme que passa à long term memory de quem o vê.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

domingo, 20 de dezembro de 2015

as the girl said to the soldier


Sometimes A Pony Gets Depressed


Where does an animal sleep when the ground is wet?
Cows in the ballroom, chickens in the farmer's corvette.

"À pala de Walsh est le site le plus important du Portugal"

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

The Manxman


A tecla mais insistente em que se toca quando alguém se põe a reflectir sobre The Manxman, o último filme mudo de Hitchcock, é que se trata disso mesmo, o último de uma série de aprendizagem onde ainda não havia a possibilidade de introduzir o som na mise-en-scène. E quem sou eu para fugir à tradição? Lembro então a última sequência na qual Philip vem à casa de Pete e dela trará Kate e o seu filho. A multidão olha embasbacada esse desfecho criticando com o olhar a infidelidade e o abandono do pai de família. O sair para o exterior, como fim de um triângulo anunciado nos primeiros momentos no filme, é essa fuga em direcção à rua, em direcção ao corte com o que poderíamos esperar de um final feliz, e finalmente, a ida em direcção à rua onde estarão, a partir de agora os sons do cinema do inglês. Se o filme tem muitas idas e vindas, com cada um dos lados do triângulo a mudar temporariamente do lado que ocupa, ele mostra que um final feliz é impossível. Que a vida obriga a essa mudança constante e que, como mais tarde explicará Renoir, cada um tem as suas razões e que à sua maneira todos estão simultaneamente certos e errados. Pete sacrifica a proximidade com o seu amor para tentar obter bem estar material para ter condições para se casar mas é sempre verdadeiro face aos seus sentimentos. Kate muda de amores, por uma questão de proximidade (prefere quem fica na ilha, na praia, ao homem que dela parte de barco) mas é sempre verdadeira a quem ama. Finalmente, Philip não quer abdicar da sua carreira (e por momentos, parece preferi-la a Kate) mas tenta sempre manter-se verdadeiro face aos sentimentos de fraternidade para com Pete e de amor para com Kate. Todos têm razão, vistos a partir do interior do seu vértice, razão pela qual o olhar de fora do triângulo, o da multidão a exigir um desfecho justo e linear, se torna menor e impossível. The Manxman aproxima-se da estrutura de The Ringambos trabalham sobre a estrutura triangular composta por dois homens e uma mulher. Mas enquanto neste os vértices masculinos lutam exclusivamente pelo vértice feminino, neste Peter e Philip são amigos de infância. Tal significa que para um deles ficar com a mulher, terá de quebrar a estrutura que o liga ao outro homem. Fica deste período mudo que a narrativa é para Hitchcock um traçar de possibilidades (e muitas vezes o espectador afasta-se dos filmes por essa via mecanicista que vai incansavelmente de um ponto a outro, precisamente por estar habituado a defender um dos lados da geometria) e que por sobre essa escrita vai traçando possibilidades técnicas: pontos de vista a partir de copos de champagne, picados inusitados, circularidades e sobreposições paranoicas e psicanalíticas, contraluzes, ocultação oportunista de informações vitais na cena para mexer com o espectador, etc. Com The Manxman, Hitchcock sairá finalmente da "ilha do mudo" para fundir num só estas experiências narrativas e técnicas com a certeza que o som não poderá deixar apenas implícita essa razão que todos têm, mas terá de ser esmiuçada pelo embate com as palavras e com o rasto sonoro que as personagens deixam sobre os objectos e espaços que habitam.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

PTA: a arquitetura da extração como metáfora do capitalismo


Segunda participação na revista italiana La Furia Umana, desta vez num texto sobre There Will Be Blood de Paul Thomas Anderson e umas brincadeiras sobre capitalismo, extração e fluídos.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Enquanto chove lá fora



domingo, 13 de dezembro de 2015

Sem dentes

A claridade atinge as coisas com um bastão de luz, arrancando réstias de esperança a uma vida já sem dentes. Uma vida de pernas finas, os ossos a verem-se, uma vida a chupar sôfrega os acontecimentos numa qualquer esquina do presente. Insistimos todos em acordar em ontem, dobrar a espinha para chegar ao chão e colocar as luvas. Saímos de casa, partimos ou espantámos o espelho, e contamos o passo até ao ringue fabril, o ringue do ring-ring, do centro de chamadas onde no canto oposto está um suado a olhar para nós, a dizer que nos vai partir os dentes. Levanta-se, dá-nos um murro mínimo - nem seiscentos euros chega a ser - e parte-nos os dentes. Eles caiem ao chão, bem que nos avisou. Vamos ao canto, tiramos um envelope do roupão fato de trabalho e guardamos os dentes para a factura da sorte. Já está escuro, o tempo passou, a luta foi árdua, oito assaltos por dia, menos não sei quantos dentes e hoje o champagne vai ser de pacote. Copo de plástico, o líquido escorre pelos buracos inchados das gengivas e no serão haverá um filme onde uma prostituta vira rainha mas alguém vai ter de explicar a reviravolta com um intertítulo. Filme mudo: vida muda e sem dentes. Vida desdentada, a prostituir-se de boca cheia, à espera de um dia sem ringue, sem ring-ring, de um dia sem pau pau, murro nos dentes. Aqui o sol ainda não é um aquecedor e por isso resta-nos insistir nessa esperança depositada a ferros na claridade que resta, nos dentes que sobram de uma boca de palavras cada vez menos infinita.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Geografia

On the Bowery- Lionel Rogosin (1956)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Artesanato

http://www.letralivre.com/catalogo/detalhes_produto.php?id=90503


Divisões
 
antes convicção territorial
hoje terrorismo nos recintos
antes pós pretos, pós brancos e uma fronteira colonial
hoje patinagem papa-tudo do império
antes corpo-igreja, corpo-templo, corpo-instituição
hoje circulação virtual, corpo-mundo, descorpo
antes manifestos unidimensionais para todos
hoje bolhas pluriexestenciais para poucos
antes os interesses da economia e a economia dos interesses
hoje caixões de papel-moeda atirados ao mar
(e "O Capital" uma peça de teatro absurda onde crianças
pré-pós-humanas
brincam ao jogo do esquecimento)

Antes eficiência de homens-tanque de guerra e mulheres tanques de roupa
hoje coeficiente queer, número infinito

Antes deus "arranha-céus", um para muitos
hoje multidão "arranhando-os-tetos", muitos para muitos
antes choro como terrível naufrágio dos humanos:
teatro, tempestade, shakespeare
hoje choro como engenharia:
antropologia, hidráulica, internet

antes tarde
hoje nunca
antes nunca
hoje mais
antes hoje
hoje antes mais.
 
Rita Natálio

O pós-eu sou eu e o pós-tu es tu

Pós-moderno, pós-humano, pós-evidente. Pós como "depois de". Correndo a toda a velocidade para dizer que isto sou eu mas depois do que veio, que eu não sou igual ao que passou. Elogio da diferença. O apelo do imediato que vê na continuidade um despeito da autoridade, da legitimidade em que não sou tido e achado. Mais diferença de que repetição. Diferença como pós, conjunto de poeiras. O que vem depois do pó? Depois do pó, virá o eu virado do avesso. Um pós-pó. Mas cada partícula de pó acrescentada ao pó, já só pode ser um a seguir do pó anterior. Cada segundo que passa eu definho como uma versão incompleta, atrasada de mim próprio. Pós-eu sou eu mais uma partícula de pó. Mas essas partículas parecem jogos monadológicos parvos de um todo sem pós, sem depois de, sem adiamentos ou aditamentos. Pós-eu sou eu sem saber o que vem depois, isto é, descartando todo o pó e os pós como rastos de um medo e de uma ignorância arrogantes sobre o futuro.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

A espera


10:20. Não era a hora do relógio, nem da manhã nem da noite. Não era sequer a hora interior, como vislumbram alguns que sabem sempre onde está o ponteiro do relógio, semicerrando os olhos e fazendo uma aposta interior. Esses são os apostadores do tempo. Ele não. 10:20 era o tempo que mostrava o placar, que lhe indicava quanto faltava para chegar o seu metro. Tinha coisas para fazer. Era importante. Pelo menos era o que achava. E por isso, 10:20 era algo quase impossível de suportar. Leria? Enxergaria as pessoas que se iam acumulando na plataforma? Concerteza foi fazendo ambas as coisas, enquanto voava o anúncio da mensagem do "estamos a experienciar perturbações em toda a linha..." Toda a linha perturbada, perturbação geométrica, perturbação meteorológica? Sabia o motivo do horror dos dez minutos, da paragem: os trabalhadores estavam reunidos para decidir se haviam de parar todos e a sério. Como certos pássaros que fazem aquelas formas bonitas ao voar em conjunto mas ninguém repara neles excepto quando aparece numa revista. Sentado, olhou o placar uma vez mais e pensou: a espera é a espiritualidade dos derrotados, mas a acção a caligrafia dos selvagens. Puxou a cabeça ligeiramente para cima para tentar vislumbrar, por entre as paredes do metro, as figuras em voo dessas tais multidões de pássaros. Não tendo distinguido nada, nem mesmo no céu da imaginação, mirou novamente o placar: 9:20. Esperou.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Então a Frente Nacional ganhou as eleições em França? E depois há testemunhas de Jeová na televisão? O Porto voltou ao ciclismo? Nostradamus bem nos avisou que seria tudo uma questão de tempo.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Alguém me disse numa ocasião que tinha algo especial. Pensei que era cancro mas era afinal a escrita. A escrita como um belo cancro regenerador das palavras e da cabeça. Sentei-me pouco depois à secretária para tirar tudo a limpo. Enfastiadamente especial, sentei-me para escrever, para tentar puxar pela escrita como um funcionário de repartição em luta com o seu desejo de foder os utentes. Dez horas em frente ao computador e não escrevi nada. Mas esse nada foi a coisa mais justa que podia ter escrito. Desde esse ocasião quando alguém me fala em especialidades ataco-o com o meu silêncio poético. Sou demasiado bom a calar para ficar com a boca a meio de.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

As couves

Da minha varanda pode ver-se um pequeno quintal que alguém se esqueceu de derrotar. Está entalado entre um prédio alto e anónimo e uma velha casa submissa, de paredes descascadas pelo frio, que terá resistido à uniformização urbana. Por trás do quintal ouço muitas vezes os uivos de alguns jovens a quererem manter-se vivos, gritos vindos de um campo de futebol amador no qual, hora sim, hora não, se joga com paixão, deduzo. Nesse quintal que agora observo há uma senhora de aspecto idoso e frágil que percorre todos o seus recantos. Não sei o que faz, mas sei que trabalha. Distingo uma laranjeira, um pequeno quadrado de terra escura cultivada, um caixote do lixo e outra árvore despida. É Outono. Neste espaço há também quatro folhas grandes que me parecem couves. São tão altas que quando a senhora delas se aproxima dá para perceber que têm a mesma altura. A Natureza não escolhe prioridades deste tipo. Não está sol mas é possível, tenho a certeza, quando o tempo se adequar, ficar à sombra dessas couves. À vista de todos essas plantas são a figura do desprezo de uma amálgama de outras formas e objectos que trazem àquele quintal uma suposta "riqueza" que qualquer inspirado nela desejasse distinguir. Mas basta ficar uns minutos a olhar para elas para se perceber como são elas o centro desse quintal: marcam o fim do rectângulo desterrado, inclinam-se na direcção da modesta vivenda (como que apontando a sua função de monumento fora do tempo de agora), avisam as demais árvores sobre a direcção da claridade que lhes dá vida. A senhora, que é minha vizinha mas que não passa para mim de outra planta que se move, aproxima-se das couves. Não as vai cortar. Acerca-se delas apenas como que temerosa. E, ao longe, quero crer que elas, apesar de mais jovens, contam à senhora uma história qualquer. Levam-na pela mão, grossa e sapiente, por entre os corredores de uma juventude invertida que se aproxima. Explicam-lhe as coisas, uma a uma, a origem dos sons dos carros, a altura da parede do prédio que os cerca, as reacções das pessoas quando vivem e quando falam. A senhora vira as costas às couves e percorre o quintal pelo seu limite à direita, tomando um pequeno carreiro que, estúpido como sou, me esqueci de vos descrever. Chegada ao carreiro, ajeita o casaco de malha - o cabelo continua insubmisso no lenço que o tenta apanhar -, e entra em casa. Não sei se vai voltar a sair, mas as couves continuam, como palmeiras deste pequeno oásis de pobreza, imóveis, certas do que acabaram de contar. Tenho de fechar a cortina pois devo voltar ao trabalho e elas, agora, observam-me. Não posso correr o risco em pleno dia de ser olhado desta maneira. É que para mim essas couves são a literatura.  

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Polaridade

Existe uma polaridade que oscila entre a utopia da técnica e o seu determinismo pessimista. Uma vislumbra o Prometeu sem castigo, a caminho da total emancipação e reconciliação do homem com o mundo. A outra olha à esquerda, procurando a renovação mais ou menos marxista da teoria crítica, e olha à direita, encontrando apenas os escombros de uma civilização dominada pelo crescente ultra liberalismo  high tech e consequente apocalipse da automatização.

Bem vistas as coisas, entre Xavier Dolan e Sharunas Bartas, por exemplo, não é outra mas sim a mesma questão que os aparta.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Agora vou escrever isto, depois...

Não estou certo qual foi o momento em que passei a considerar com um certo carinho aquelas pessoas que falam em voz alta consigo próprias. Claro que não me refiro aqueles que vão falando pela rua como se dialogassem com um amigo de longa data. Esses, até à data, ainda não consigo fazer-me esquecer das vergonhas e olhares alheios. Falo antes daqueles que em momentos de actividade vão agendando para si o próximo passo a dar. Lembrei-me disto a propósito de algumas cenas do jovem Moretti nos seus filmes iniciais a comentar o mundo, comentando-se. Claro que aqui há o efeito da arte e do evitar do monólogo interior, em alguns contextos, mais aborrecido. Mas ontem, ao ir fazer um exame médico, deparei-me com uma senhora administrativa do hospital que fazia isto também. Juntava os papelinhos, assinava os papelinhos, dizendo em voz baixa para si: "agora, isto vai para aqui", "agora vou falar com o dr. tal", "isto é daqui", etc. Esta forma de agenciar os "agoras" não me pareceu nada patológico. Exasperante por vezes, admito, se estivermos muito apressados. Mas ao olhar a senhora pensava nessa reacção instintiva, primitiva, de pôr um freio ao mosaico de obrigações que não se sucedem necessariamente no tempo, mas que se acumulam como galinhas doidas. Falar para si próprio, parecia-me ser uma forma de pôr um momentâneo freio ao caos. Não de atrasar o fluxo das suas actividades mas de dar viva voz à expressão "uma coisa de cada vez". Escrevo este texto e agencio-o como um pequeno passo, num longo percurso diário. Há dias em que deixo sair do armário do peito essa voz como extravagante filofax portátil. Noutros dias não o faço e sinto os compromissos espirituais a revoltarem-se com cada acção exterior que há que levar a cabo. Falar connosco próprios pode ser, quem sabe, colocar na mesma agenda de prioridades a loucura e o quotidiano eficiente e organizado.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015