sábado, 9 de janeiro de 2016

The Danish Girl: o perigo do "based on a true story"


Nunca me caíram bem aqueles argumentos que se usam para justificar normalmente a validade de um filme medíocre: "Ah sim senhor, é um tema muito importante. Alguém tinha de o realizar". Os filmes fazem-se não porque carregam temas — sejam eles ofensivos dos diáconos remédios desta vida, sejam eles vozes libertadoras de uma sociedade mais "justa e igualitária" — mas porque alguém tem uma obsessão (nem que seja a de fazer dinheiro) e há uma cambada de malucos que alinham nessa demente missão. Anyway, dei por mim esta semana a invocar um desses argumentos proibidos depois de ter visto The Danish Girl de Tom Hooper.    

Claro que já devem ter percebido que se trata de um filme espectacular onde o grande timoneiro de fitas inesquecíveis como Les Misérables (2012) e The King's Speech (2010) procura contar a história de uma dos primeiras pessoas no mundo, o pintor Einar Wegener, a submeter-se a uma operação de mudança de sexo. Hooper constrói alguns planos com base na pintura da época, mantendo o jogo das linhas de perspectiva e das cores. O actor principal Eddie Redmayne, depois de no ano passado ter vencido o Óscar numa história "inspiradora" em que encarna, como "génio deficiente coitadinho" o físico Stephen Hawkins, continua aqui a fazer dançar todos os músculos e olhares do seu corpo. Tudo bem, tudo isto está tudo certo (ou antes, não está certo mas é expectável).

 O filme baseia-se no romance homónimo de um senhor chamado David Ebershoff, que já de si se diverte a recriar ficcionalmente alguns elementos da vida do casal Einar Wegener (que viria a transformar-se em Lili Elbe) e a sua esposa Gerda Wegener. Já será bom de ver que aquele "baseado numa história real" com que se tenta vender o carapau, já pouco tem de peixe. Mas o incrível é mesmo a tese do filme. Portanto, Einar começa por ser um vigoroso jovem heterossexual casado com uma bonita mulher (há cenas de sexo e tal) e quando esta começa a pedir-lhe para posar para ela vestida de mulher para continuar uns quadros, qualquer coisa muda no seu interior e surge Lili. A tese, meus caros , é meio freudiana: a de que o sentir-se mulher sempre lá esteve mas estava recalcado e aqueles pedidos fizeram "despertar a mulher que estava no seu interior." 

Embora ache um tanto inverosímil que isto se tenha passado mesmo assim ainda admito que só terei 100% certeza quando ler algum relato pessoal de Einar/Lili. Convenhamos que há uma sugestividade que Hooper e companhia quis aproveitar: ter um dos actores mais badalados do momento a transformar-se assim de homem para mulher, de repente, ali, para a câmara. Agora, um dos factos que foi elidido do filme foi a bissexualidade da esposa, não deixando espaço a que pudéssemos pensar em como tudo presumivelmente se deve ter passado de facto. Que Einar desde cedo se sentiu mulher e que isso era consentido pela esposa, ou seja, que não ouve nenhuma súbita transformação. O mal de esconder isto, e por isso falava no argumento do "tema importante" que invoquei, é que depois o filme sugere que poderia indirectamente ter sido a mulher, Gerda, a causar-lhe os seus sentimentos femininos interiores. Numa cena ela própria lhe pergunta se foi por causa dela que Einar se começa a sentir como Lili. E depois Gerda é mesmo aqui retratada como a mulher apaixonada e heterossexual que fica até aos últimos dias de vida do seu marido. Como se ele padecesse de uma fulminante doença terminal. Sim, como se fosse uma doença, leram bem.

Não sou um fanático da fidelidade histórica e na maioria das vezes até prefiro um completo afastamento de um suposto "relato oficial" dos acontecimentos (pois sabemos que quando se começa a querer contar o que aconteceu ficamos sem filme e com uma soma colada de eventos que dificilmente pode ser, bem... um filme). Agora, quando essa falta de fidelidade sugere que uma mulher possa nascer no corpo errado, como se isso fosse uma doença — e sobretudo se milhões estão a ver e a pensar "eh caraças, se o meu filho se vestir como mulher pode estar perdido, deixa-me cá preparar umas chapadas para essa eventualidade, para me prevenir contra esse outro tipo de constipação mais grave"— então aí, meus amigos, há problemas.

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