quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Aos 35 já devemos saber apanhar na tromba

Ontem pela primeira vez na vida vi The Set de Robert Wise e tenho 35 anos. A mesma idade de Stoker, a personagem de Robert Ryan, um pugilista que já caiu demasiadas vezes ao ringue mas que insiste que ainda pode vencer. A namorada só quer que ele desista pois aquilo não é vida para eles. O meu umbigo insiste em chamar o filme para junto de mim, como uma parábola sobre a vida. A perceber o final triste como feliz. Stoker, que todos acreditavam que ia perder o combate contra um jovenzinho de vinte e poucos, afinal não foi ao chão e venceu. Velho demais mas era dele aquela última glória da perseverança. E conseguiu-o sozinho, com a dor do banco vazio da namorada que nem o combate foi ver. Mas o preço da vitória, por não ter cumprido a sua derrota arranjada (até ao perder se tem um papel a cumprir), foi esfacelarem-lhe a mão num beco sem saída. Stoker não vai poder lutar mais e, por isso, Julie chora de alegria junto dele. Ela afinal venceu o combate do futuro, dos dois juntos para sempre sem os murros e toda aquela noite...
Mas assim como não precisamos de artistas demasiado focados em si e que não olhem para o que os rodeia, talvez também não precisemos dos espectadores amarrados aos filmes como espelhos distorcidos. Afinal, o cinema serve para ver mais, não o mesmo, no diferente. Por isso, é preciso passar além das tabuletas-aviso do filme. Depois do genérico, Wise, com um plano de grua, aproxima da rua à fachada no recinto onde os combates têm lugar: Paradise City. Mais tarde podemos ver o nome do hotel onde Stoker e Julie estão hospedados: Cozy Hotel. Nomes idílicos e enganadores para tão ferozes lutas. Dois ringues. Um de facto onde o pugilista veterano ainda consegue aparar os golpes que o separam de um golpe derradeiro, de génio, de bilhete para um futuro grandioso tão imaginado; o outro, o ringue mais sério, o do amor, onde Julie está prestes a ir ao tapete: Maybe you can go on taking the beatings. I can't... 


Passar além das tabuletas significa não opor demasiado estes ringues, não conceder à parábola do paraíso, dos sonhos e do confortável uma excessiva importância. Como dizia Hitchcock: se a vida não faz sentido porque é que um filme há-de fazê-lo? Baralhando a lógica podíamos ficar com o seguinte: com os planos do gordo que come sem parar ao assistir aos combates, com a mulher com ar excitado e sanguinário que pede para um combatente matar o outro, com um homem que faz sempre o mesmo gesto como se estivesse ele no ringue. Estes são os habitantes habituais e voyeuristas dos combates (da vida) de Stoker. É aqui que entra o cozy e esse escândalo de poder conceber uma vida de derrotas feita. De ir, uma e outra vez ao tapete, e de mesmo assim rejeitar a ironia da tabuleta, do tapete da nossa casa. Paradise City pode bem ser o lugar onde vamos ao chão. Onde aprendemos a cair.

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