sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Inútil

Danado, existe pr'ái um ser, vocês sabem, a quem lhe foi dado existir. Espremido pelos minutos, exprime-se no círculo. A sua vida é a de um prisioneiro, a de uma liberdade tanta, a correr as nove voltas do inferno e a contar pelos dedos, pelas patas, pelas ruas e lutas, as suas quedas, a sua inutilidade. Sempre à volta, vive praticamente sem vida, mas não pratica, nem mente. Por vezes, o sol parece que brilha e lhe acerta em cheio, e nessas ocasiões anda muito direito, quase feliz: corpo para cima, muito leve, dentes de fora a carregar orgulhoso o desespero, a exibir uma energia brilhante que o frio, a maior parte das vezes, lhe retira. Nesses instantes não se importa de ser o que é, praticamente nada. Um círculo pouco prático, com pernas para se inclinar, maníaco, pelas portas, pelas paredes, pela manhã de uma tarde que é um dia de um ano interminável. Não precisava de grande coisa, quase nada, praticamente, talvez um espelho que lhe mostrasse a morte a trabalhar?

Ínfimo, existe pr’aí um ser, vocês sabem, a maior parte das vezes ninguém ouve os seus uivos salgados, berros de barro que fazem já parte do som do Inverno, como o cantar dos pássaros ou o vento alucinado. Mas eu sei que vai chegar o dia em o círculo que ele carrega vai desgastar o chão até fazer vulcão, até fazer ferida. Nesse dia, quando este ser que é praticamente nada se lançar vulcão abaixo, livre e quente, vai acontecer um milagre daqueles que ninguém acredita por serem gostosos. As entranhas da terra, incandescentes e loucas, vão recebê-lo nos braços e cuspi-lo para o éter. Nesse instante a inutilidade terá enfim cumprido o seu fim e o mundo poderá recomeçar, inerte, mudo, novamente. Vocês sabem, as estações não hão-de mudar muito por isso: os mesmos meninos correrão ensonados para a escola e os velhos continuarão no mesmo passo lento para o jardim.  

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