sexta-feira, 30 de junho de 2017

A terapêutica do pessimismo


Num dos poucos contos que ainda me faltava ler de Dostoiévski, "O Sonho de um Homem Ridículo" (1877) um jovem quer dar um tiro em si próprio. Matar-se. Não sente nada, tudo lhe indiferente. Até a menina rota e suja da rua que vem pedir ajuda lhe merece desprezo. Olha para o lado e segue. Na noite em que ia acabar com a sua própria vida tem um sonho: imagina-se morto no caixão e é levado por um ser para outro lugar - um paraíso na terra - onde tudo é perfeito. A comunhão entre o homem e a natureza, os bons sentimentos, a comunidade perfeita onde todos são um (como sonharia Sloterdijk, uma "teoria geral da paz" tornada concreta). Sendo o nosso herói o homem convicto de que a vida não vale a pena ele acaba por funcionar, segundo a mente perversa do escritor russo, como o grão na engrenagem. A sua passagem poluída pelo paraíso daqueles seres humanos tornados perfeitos corrompe-os. E eis que logo a propriedade e a ambição os divide, a língua serve a sua desunião, maltratam-se os animais, surge o mal estar, a guerra, a fome e todos os outros males seguintes (estes imagino-os eu, pois que não os descreve assim o autor). Mas o mais genial desta breve narrativa é a importância da mudança de posição a partir do qual se vê e se fala para que qualquer mudança venha a ocorrer. Para que o nosso herói não se queira mais matar, para que se apegue à vida, essa humidade entranhada no solo depois de desabarem as chuvas, é preciso que ele passe a não ser o mais pessimista do grupo. Agora, no sonho, ele vê-se na qualidade do optimista: tem de tentar convencer aquelas pessoas, outrora perfeitas, que ele foi a razão do seu pecado original e que têm de tentar regressar ao ponto em que se encontravam antes dele chegar. Estas são incrédulas, não se lembram do momento anterior, tempo no qual tudo era felicidade, bonança e perfeição. Como o narrador se vê finalmente na posição do menos negativo do grupo, tentando pregar a vida e as delícias de estar vivo, a frescura da água ou o calor do sol, ele torna-se naquele que quer viver.

Pequeno pedaço de literatura que nos mostra como funciona, de maneira intestina, a terapêutica do pessimismo. Dostoiévski pôs-se a jeito para viver vasculhando nessas profundezas. A magia "uplifting" do pessimismo russo ainda hoje dá frutos. Suicídio é uma flor que ainda não percebeu a utilidade que possui: tornar vastos os jardins, corromper a ferrugem dos anos, dar-se a conhecer numa manhã de chuva, minuto de um século de eternidade.

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