quinta-feira, 22 de junho de 2017

Do outro lado


Passeava como sempre: a caminho de nenhum sítio, chegando a lugar algum. De súbito, pisca o sinal da farmácia, sincronizado coração verde com as batidas da manhã. Subi a rua e parei junto de um arbusto. Ahh, a poesia de todos os dias. Uma mulher, a uns bons dez metros de mim, estava parada de perfil com uma mão no rosto. Ofegava ligeiramente ou era o raio do vento que me secava a vista. Hirta, via-lhe a cara tapada e apeteceu-me entrar a fundo no seu desgosto. Chorava de pé, no fundo de um parque de estacionamento. Estávamos sós e eu ainda mais pois que ela não me via. Sem me fazer notar, procurei participar naquele pequeno dilúvio privado, ser uma testemunha que empatiza. Empatizei assim: pensava na sua dor, enquanto olhava fixamente ora o meu arbusto verde, ora o verde da farmácia do outro lado. Eu buscava um remédio qualquer. Teria tirado um momento do trabalho para vir ali, nas traseiras do quotidiano, no fundo dos carros porcos e estacionados, chorar um pouco? Um familiar doente? Qual terror latente? O sol afirmava-lhe as linhas direitas do corpo e eu apreciava o meu momento Emily Dickinson em modo terraço, via o reverso dos brilhos e dos risos do dia. Apanhar o choro do outro é como vislumbrar de forma ousada e fugaz um pássaro raro no cimo de um castanheiro. Assistir a toda aquela interrupção do voo e da simpatia do "olá, como vai, bom dia". O momento da reparação.

Queria dar tudo de mim, não para reparar a lágrima ou a dor daquela mulher. Procurava antes sincronizar o nosso pesar, rimar a nossa solidão, como uma triste canção solene e digna. Nesse momento, a senhora virou-se e vi-lhe a face toda inteira. Do lado até então oculto pude ver um telemóvel e a mão que o segurava junto à orelha. Não estava a chorar, estava a falar ao telefone e a mão a servir de para-sol. Despenhei um pouco pela encosta da poesia de bolso e nesse instante o pássaro raro agitou as asas muito brilhantes, saltou do ramo e voou. 

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